Transcrevo abaixo um pedaço de email onde converso com um amigo sobre críticas ao conceito de édipo em psicanálise – de um livro que ele tinha me sugerido. Essa conversa teve (e talvez terá) muitos capítulos; talvez alguns apareçam aqui. Embora considere o conceito em si problemático, por outro lado considero que a crítica muitas vezes mais atrapalha que ajuda. Como tudo na vida, a crítica pode ser boa, se bem utilizada; não é a coisa, enfim, mas seu uso.
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Retomando a questão do Édipo, queria fazer uma diferenciação aqui: no nível teórico, acho válido que se queira discutir o Édipo como normativo, e a psicanálise como TEORIA talvez tenha que ser revista em algum ponto, etc, etc, etc. É questão de criticar alguns fundamentos e , com base na coerência suposta da teoria, demandar alguns ajustes. Esse é um ponto.
Outro ponto é a psicanálise como prática. Nesse nível, o Édipo conta pouco; melhor dizendo, a TEORIA conta pouco. Pois estar atendendo / sendo atendido é uma experiência, e o grande ensinamento de Freud foi que é o paciente, e NÃO o analista, quem faz a análise; o analista apenas o segue, procura ajudá-lo com o processo…
Usando uma imagem, é como as teorias sobre o heliocentrismo x geocentrismo, que existiam desde a antiguidade; uns defendendo que o sol estava no centro do universo, e demandando coerência nas teorias existentes, outros defendendo que a terra é que estava no centro, e buscando coerência nas observações correlatas; mas o fato dessas discussões existirem NO NÍVEL DA TEORIA não impedia de o sol nascer e se pôr todo dia, da mesma forma que hoje, provavelmente. O FATO CONTINUAVA LÁ. E o que é o fato na psicanálise? É que a RELAÇÃO com o analista muda a pessoa – para melhor, espera-se, kkkkk…
Uma forma de Freud “explicar” isso – teorizar sobre isso – passou pelo édipo. Esse certamente é um conceito complicado, discutível, como outros, aliás (pulsão de morte… castração… ????)…. mas eles estão todos referidos à teoria… acho que a prática é outra coisa, e inclusive acho que Freud concordava com isso. O fato de não ter deixado nenhum “manual” de análise vai nessa direção; ele confiava no “tato” do analista – ver os artigos metapsicológicos – , e o tato, como definiu depois Ferenczi, é justamente a “capacidade de se relacionar com empatia”, isto é, de criar um bom ambiente de RELAÇÃO (volta a relação de novo…).
Falando em conceitos, não posso deixar de lembrar de um livrinho ótimo, escrito por um brasileiro por sinal, que é “O Tronco e os ramos”, do Renato Mezan. Extremamente recomendo esse livro para pensar a psicanálise. Nele Mezan tenta mostrar como EM FREUD MESMO existiriam pelo menos 4 psicanálises, 4 “ramos” teóricos que depois se desenvolveram nas 4 grandes escolas psicanalíticas (relações de objeto, escola do “eu”, escola lacaniana e escola kleiniana). Essas teorias meio que se tencionavam mutuamente, e eram fruto da cabeça teórica do Freud tentando dar conta do que acontecia (na prática clínica).
Na minha visão, (a teoria do) édipo é uma tentativa (conceitual) do Freud para dar conta dessas tensões (teóricas); uma tentativa de UNIFICAR a teoria psicanalítica, na medida em que o conceito de édipo mistura elementos de IDENTIFICAÇÃO (narcisismo, relação idealizada com os pais, etc), de INSTÃNCIAS psiquicas (ego, superego, ideal de ego, etc), de SEXUALIDADE (catexias, investimento, fixações, recalque), etc.
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Enfim, minha crítica à crítica dos autores sobre o Édipo é que muito comumente essas críticas são reducionistas… partem de uma imagem simples e unívoca de um Freud normatizador para então “salvar” a psicanálise – de forma um tanto simplista também… – quando é possível (com um pouco de simpatia) perceber que o próprio Freud estava às voltas com esses problemas da psicanálise e que ele fez o que pode, deu seu melhor, mas estava ciente da precariedade de alguns conceitos. Essa precariedade, no entanto, não devia impedir que a análise, enquanto PRÃTICA, continuasse, baseada na relação, nos EFEITOS que ela produzia, etc.
No fundo, lembro de quando EU era crítico da psicanálise: minha impressão era de que cada conceito que eu criticava, os psicanalistas vinham e diziam “mas isso não é muito importante; temos outros conceitos, etc”, até que parecia que eles sempre “escapavam” com essa “malemolência” (ou displicência?) teórica… no fundo eles estavam me dizendo que a teoria não importava tanto, que era somente uma “historinha” sobre o que acontece – o nascer do sol, etc – e que o FATO de o sol “nascer” estava ali, e ISSO era o importante. As teorias sobre isso eram só maneiras muito pobres de tentar descrever o fato, comunicá-lo, traduzi-lo em palavras. Mas na medida em que eu me interessava pela TEORIA – eu não PODIA ver outra coisa senão a teoria… e perdia o nascer do sol…
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Talvez seja tudo uma questão de simpatia; minha simpatia hoje, minha antipatia ontem, são primeiras em relação aos argumentos. Bom, de certa forma é isso mesmo que estou dizendo né, que o importante é a relação… mas o nível da coerência (teórica) existe, e acho que cumpre um papel importante ao convencer as pessoas a experimentarem (ou não) as relações que circunscrevem a clínica. Sem contar o papel da ciência, que é esse exercício tão difícil de testar a correspondência entre nossas “historinhas” e os fatos que supostamente essas histórias circunscrevem.
Acho que era o Espinoza que dizia que “tudo compreender é tudo perdoar”; entendo isso no sentido de que todas as nossas escolhas são determinadas, que para tudo há uma “causa adequada” (inclusive psicologicamente, no “mundo interior”), então quando temos uma visão ampla de todas as causas, tudo é compreendido, e tudo se apresenta causado, necessário, determinado – perdoável, em suma, por ter uma razão dada pelo todo – que no fundo é Deus, ou é inseparável da divindade. Digo isso porque enquanto escrevo sobre a importância da “relação” frente ao teórico, penso também na critica possível de que dar importância à relação já é em si mesmo uma “teoria”, e de que talvez essa teoria implique em pontos X. Y, Z que me mostrariam que a teoria é no fundo infundada, isto é, não repousa sobre “dados”, mas sobre perspectivas históricas, preconceitos, talvez erros…
Isso é completamente plausível.
A resposta que me ocorre é a de Sócrates: se eu for esperar ter certeza absoluta sobre os fundamentos das coisas, provavelmente não vou começar a andar nunca… ao passo que se começar a caminhar, mesmo errando, posso ir, de correção em correção, avançando… uma proposta científica verdadeiramente “avant la letre“, como se diz… e que Freud subscreveria, penso eu, na medida em que queria uma psicanálise “científica”, isto é, sujeita a essas correções conforme se avança…
É claro que essa crítica conceitual tem um papel nisso – no avançar. Só não pode ser confundida com uma crítica à caminhada proposta pelo autor; o que seria tão raso quanto aceitá-la enquanto verdade estabelecida, e não enquanto… caminhada. Céticos e acríticos se encontram nesse ponto…
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