Já falamos sobre o assunto neste blog, aqui e aqui. Mas resolvi encarar novamente o tema, porque dá ‘pano pra manga’, como se diz.
O fato é que, para Winnicott, “alucinamos o real”. Não sei se essa frase aparece assim em sua escrita, mas creio que se adequa bem ao seu contexto. Resolve assim de maneira criativa uma questão antiga da filosofia, qual seja, o “status” de realidade daquilo que percebemos. Vejamos como isso acontece.
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Winnicott não era muito dado à divagações filosóficas; seus escritos são sempre muito pragmáticos, muito focados na experiência com os pacientes. Mas creio correto dizer que Winnicott concebe a percepção como um fato biológico, isto é, que não sofre, em si mesmo, alterações nos “dados” que nos chegam da realidade para além daqueles que a própria biologia impõe. Assim, se nosso olho é programado para enxergar somente um pedaço do espectro total de cores, existe uma seleção aí, um viés, mas ele é antes fisiológico ou biológico do que psicológico. Sobretudo, ele pode ser conhecido, na medida em que se conhece o órgão de percepção e seu funcionamento.
Numa palavra, a percepção, os órgãos que a realizam e as alterações que porventura ocorram na percepção estão todos dentro de um mesmo âmbito, o âmbito material ou objetivo. Mas, para além da percepção, está a “apercepção”, o tratamento que a percepção “pura” recebe da mente – e este é o ponto ‘para além da curva’, aonde o subjetivo embaralha as coisas.
O subjetivo embaralha o real.
Imagino duas possibilidades para a ‘montagem’ das instâncias psicológicas da mente: OU essas instâncias são montadas a partir do zero, quer dizer, sem que existam “lugares” ou estruturas preparadas pela biologia, OU tais instâncias se montam a partir de lugares já reservados, já estruturados, mas vazios. Em ambos os casos, é a realidade das relações entre o sujeito e seu ambiente que será introjetada, apropriada, para o “preenchimento” desses lugares / instâncias, inserindo um imponderável no dado percebido – o real “puro”.
Tomemos emprestado um exemplo de Bergson: ele compara a relação matemática de divisão com um instinto estruturado, mas vazio: sabemos, só de ver o símbolo da divisão ( x / y ), que dois números quaisquer poderão ser colocados nos lugares de “x” e “y”, e sabemos também a relação que se dará entre eles. Assim, existe uma estrutura já moldada entre os números, embora essa estrutura seja vazia, isto é, possa ser preenchida com qualquer número. Podemos pensar que a montagem das instâncias psicológicas (o Ego, por ex.) se dá da mesma forma: existe uma estrutura montada, um “lugar” vazio biologicamente preparado, à espera das relações com o ambiente para se “preencher” – tomar forma. (Essa hipótese casa bem com a visão de A. Damásio, por exemplo, que concebe o Self e a consciência como montadas a partir de mecanismos corporais).
De qualquer forma, em ambas as possibilidades creio que a visão winnicottiana implica na valorização da relação com o ambiente para o “preenchimento” dessas instâncias. Essa relação é que formará a subjetividade, a dará um tratamento / interpretação subjetiva aos dados da percepção, embaralhando, como disse, o real. Vou tentar me focar aqui na maneira como se dá esse embaralhamento do real pela subjetividade, segundo Winnicott
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Conforme já comentado em outros posts, Winnicott propõe a existência, no início do desenvolvimento do bebê, de uma sobreposição entre o que a criança percebe e o que a mãe apresenta como “real”. Assim, se a criança sente fome, a mãe lhe oferecerá alimento, mas, da perspectiva da criança, parecerá que esse alimento foi criado por ela, criança, junto com o desconforto da fome.
Isso acontece porque ainda não existe separação (psicológica) entre o bebê e sua mãe; o bebê não dispõe ainda de aparelhagem mental suficiente para viver como entidade separada do ambiente, tampouco para perceber o ambiente como separado de si. Pensemos no bebê dentro do útero; esse estado dá uma imagem da indivisão que existe no início da vida entre o feto e seu “ambiente” – a mãe. Quando a criança nasce, essa relação continua; houve apenas uma separação física, com o corte do cordão umbilical, mas a separação psicológica ainda demandará muito tempo.
Winnicott postula que nesse início do desenvolvimento a criança ainda não existe como uma unidade (falando sempre psicologicamente); cada sensação, cada percepção, que ela tem, “liga” ou veicula um início de experiência de “Self” – de si mesmo – , como se para cada sensação fosse criado um self que “acompanha” essa sensação – mas essas experiências são separadas no tempo, são não-integradas. É somente pela continuidade dos cuidados da mãe que uma continuidade irá se estabelecer entre esses vários “selfs” – até que eles se integrem em uma unidade. Assim, a estabilidade do ambiente reúne, integra, as experiências de si-mesmo dispersas do bebê.
Sendo assim, é claro que a integridade do ambiente, sua estabilidade, sua aptidão a se mostrar confiável serão extremamente importantes para a criança, pois ela somente constituirá um interior íntegro, estável e confiável para si mesmo a partir de um ambiente com essas propriedades.
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Supondo resolvidas essas questões relativas à confiabilidade do ambiente, teremos então aquela sobreposição entre uma experiência do bebê e a apresentação do real correspondente que a mãe lhe faz. A sensação de fome, por exemplo, será “respondida” pelo ambiente com o alimento. O que quero realçar aqui é que o alimento, mesmo percebido (biologicamente) em sua realidade, será vivenciado (psicologicamente) na experiência do bebê como se tivesse surgido por sua vontade, como se o bebê criasse o alimento a partir de si mesmo.
Lembremos: não há ainda separação entre o bebê e a mãe, muito menos separação entre o bebê e a realidade. Como ele iria pensar que o alimento veio “de fora” de si? Tudo que ele percebe, ainda que disperso, não integrado, é vivido como sendo parte de si mesmo, de sua própria experiência. Ele não separa o que “Ele” percebe do que ele “é”; ele se torna a percepção, cada percepção veicula uma experiência de “ser” com a qual ele vai montando – sempre com a ajuda do ambiente – seu “si mesmo”.
Nesse início, então, o real não é traumático; ele é “ego-sintônico”. Não existe nada “não-Eu” para a criança; tudo que ela percebe é “Eu”, o pouco de real e o pouco de ego que existem ‘se dão bem’, desde que o cuidado do ambiente (da mãe) seja efetivo. Esse cuidado inclusive poderia ser resumido, em termos de ‘realidade’, como um “apresentar o real aos poucos, na medida das capacidades crescentes da criança em lidar com ele”. Numa palavra: a criança É o real.
A realidade é um insulto
Mas o tempo vai passando, e, conforme se processa o desenvolvimento, as experiências de integração NA mãe vão se repetindo, e, com o tempo, haverá um acúmulo de experiências de integração. Como resultado, o bebê poderá começar a se sentir integrado. Para poder completar esse passo, no entanto, o bebê precisará realizar um outro passo complementar: para que ele seja um todo integrado (e separado), ele também precisa conceber que os OUTROS são integrados – e separados – de si.
Começa então um período difícil para a criança: todo o cuidado da mãe até então quase que se resumia numa apresentação “facilitada” do mundo, que permitia que a criança percebesse a realidade como extensão sua – o que, aliás, é condizente com a fragilidade da criança nesse período; como ela iria lidar com o mundo em sua alteridade extrema? Agora, mais crescida, ela começa a perceber o mundo como um “outro”, como independente, como algo que NÃO COINCIDE com sua criação; doravante, o que ela quer / imagina e o que o mundo apresenta não mais se sobrepõe.
“A realidade é um insulto”, dirá Winnicott, porque justamente persistirá de forma intransigente em sua ‘outridade’; e a criança, acostumada a “criar” o mundo até então – em pura onipotência – se verá obrigada a condescender, a contemporizar… e a lidar com sua impotência diante do real.
… ou potência relativa, digamos. Porque isso, esse choque de realidade, não acontece de uma vez só (nos melhores casos ao menos), e tanto a mãe, por um lado, continuará atuando como extensão do bebê, facilitando sua relação com o “monstro” da realidade, quanto, por outro lado, a criança irá adquirindo controle sobre aspectos da realidade, conseguindo, assim, alcançar novamente aquela sobreposição entre o que ela quer e o que ela tem, ou seja, alcançar novamente uma INDIFERENCIAÇÃO ENTRE ELA E O REAL.
Convivendo com o real
Como prosseguir? Como viver o resto da vida com uma realidade ‘intransigente’, cismando em nos mostrar a cada instante que NÃO somos os senhores dessa relação? Winnicott aponta algumas soluções, como por exemplo a formação de uma opinião pessoal sobre um assunto, a aprendizagem e a técnica, que nos permitem algum controle sobre a realidade… mas a principal solução, creio eu, consiste em “alucinar o real”.
Explico: buscamos, no fundo, retomar aquela sobreposição entre o que vemos / queremos e o real; buscamos novamente aquela onipotência, aquela sensação de criadores do mundo. Crescemos com ela, ela está enraizada profundamente em nossa subjetividade. Basta ver qualquer discussão sobre política, futebol ou algo que não tenha resposta objetiva; os opositores geralmente se ofendem pessoalmente com a divergência, porque, no fundo, a questão não diz respeito ao debate, mas à SUA realidade, à maneira com que cada debatedor, pessoalmente, vive sua relação com a realidade.
Mas, e se criássemos … o que já existe? Assim, um meio termo seria alcançado: eu cedo, por um lado, ao real, mas por outro, mantenho minha ilusão de ‘criador’. Eu preciso saber, então, que ali existe – no real – uma porta, mas, no meu íntimo, no meu inconsciente, essa porta existe porque EU A CRIEI. Estou sempre me colocando como criador das coisas, portanto, e assim conseguimos conviver, a realidade e eu, em um casamento desigual, mas possível.
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É claro que, as vezes, a realidade demandará demais (coisa que não acontece nos casamentos…), e então criará uma tensão entre minha onipotência e a realidade tal como se apresenta – mas que não quero / não posso assumir como minha. As possibilidades são inúmeras, desde prisioneiros num campo de concentração até um desfecho diferente daquele imaginado. Tudo aquilo que não queremos ou aonde temos dificuldade de nos inserir enquanto “criadores” – a morte de alguém querido, nosso próprio fim, doenças, acidentes, imprevistos, etc – põe em cheque nossa “onipotência”. Por outro lado essa onipotência é constitutiva do nosso olhar sobre as coisas, e não podemos abdicar dela para além de um certo limite.
Nessas situações, nessas “dissonâncias cognitivas”, muitas vezes negamos o real, simplesmente para manter o nosso lado da questão; outras vezes reconhecemos a realidade “ego-distônica” ao custo de uma reorganização do ego, que permitirá então encaixar, de um novo modo, essa realidade destoante. Por fim, algumas situações ficarão inconclusas, ao mesmo tempo negadas e percebidas, à espera de uma solução melhor no futuro, como feridas abertas mas escondidas.
É fácil ver como essas questões perduram na vida adulta. Todos teremos exemplos de coisas que preferimos não ver, ou que até vemos, mas é como se não existissem. Coisas que conhecemos mas que deliberadamente ‘desconhecemos’ – penso nos moradores de rua, nos catadores de lixo, realidades impossíveis de perceber e de permitir ao mesmo tempo, mas os exemplos são inúmeros -, sem falar nas grandes ‘feridas narcísicas’ da espécie, questões sem resposta possível, como nossa finitude.
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“O tempo cura todas as feridas”, dizem, e Winnicott dará ao tempo um importante papel na superação das feridas que porventura venhamos a sofrer com o real. E assim como a criança se socorre nos braços da mãe em suas primeiras experiências de ‘relativização da onipotência’ – isto é, quando sofrer seus primeiros insultos do real -, também o adulto encontrará em seu ambiente – sua cultura, grupo ou família – uma ajuda para os momentos difíceis.
É importante notar que esses ambientes se caracterizam justamente pelo acolhimento que propiciam, pela sustentação, pelo “holding”, dirá Winnicott. Esse espaço permitirá que as forças se renovem, e que recuperemos, aos poucos, nossa impressão de co-pertencimento ao real – pela vivência em um real “facilitado”, novamente, pelo grupo.
Mas também a arte terá um papel nisso, a arte que quase poderíamos definir como essa tentativa de reatar nossa sensação de não separação em relação ao real, de co-pertencimento, de criação onipotente das coisas – a arte enquanto belas mentiras, enquanto continuidade daquele potencial de criação que experimentamos na infância, mas também hoje. No fundo, todo pensamento, toda criação, deve participar ainda algo daquele impulso inicial, aonde nos reconhecemos nas coisas e no todo, aonde podíamos sentir, mesmo que de maneira vaga, que nós éramos o mundo.
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É patente a proximidade de uma tal concepção com as ideias de “afirmação de si mesmo” e de “amor fati” (amor ao destino) de Nietzsche. Também muitas ideias de Freud sobre a realidade dariam um diálogo magistral com essa concepção winnicottiana. Mas gostaria de finalizar pensando um pouco sobre a importância do acolhimento que nos foi dado na infância: se foi através dele que conseguimos integrar os vários pedaços do “Eu” dispersos numa experiência ainda sem memória (sem memória integrada, ligada a esse “Eu” ainda por desenvolver), então entendemos a experiência de queda e de desintegração que algumas decepções conseguem evocar ainda na vida adulta. Não é a situação em si que é tão desoladora, mas seu poder de evocar aquele tempo anterior ao viver integrado, àquela dispersão que, se era co-pertencimento e diluição no real, era também não-ser, não-ação-, não-diferenciação. Que era como viver a morte, em suma.
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