Winnicott é o psicanalista do AMBIENTE. Poucos analistas chamaram tanto a atenção, ou deram tanto crédito para a importância do ambiente quanto ele. E não se trata de uma questão menor; de fato, considerar ou não o ambiente é uma diferença de peso, que traz consigo inúmeras consequências teóricas, metodológicas e práticas.
Já abordei algumas dessas diferenças AQUI e AQUI. Nesse post vou tentar abordar uma diferença – ou uma consequência – teórica que me parece bastante importante, relacionada à valorização do ambiente como tal e à uma consequência talvez inusitada, que nos permite avançar no entendimento do que seria a tão falada “consciência de si mesmo“.
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Conforme já mencionei em outros textos, há uma linha de desenvolvimento humano propriamente winnicottiana, que não coincide com a proposta por Freud ou outros psicólogos. Nessa linha, o bebê vive primeiro uma dependência absoluta do ambiente, aonde ele é tão dependente que nem “sabe” que depende de alguma coisa – ainda não se realizou a separação entre ele e o seu entorno -, e vai avançando até chegar à uma independência relativa, aonde ele já se separou do ambiente e constituiu um ego, um self, um “si-mesmo”.
O que acontece com o ambiente nessas fases mais tardias do desenvolvimento? Ele deixa de ser importante? Não exatamente: ele continua fundamental, mas passa a agir desde dentro. De fato, um dos processos centrais do desenvolvimento humano seria justamente esse introjetar do ambiente, esse criar, dentro de si, uma “imagem” do ambiente, um “duplo” ou substituto do conjunto de cuidados e relações estabelecidas com os pais.
Poderíamos dizer então que, com relação ao ambiente externo, há sim uma passagem da dependência absoluta para a independência relativa. Mas, falando em termos gerais, a dependência de um ambiente continuaria existindo; a gente só teria, na independência relativa, um “ambiente em reserva”, que carregaríamos conosco, introjetado, e nos deixaria ‘relativamente independentes’ do ambiente externo. Vou chamar esse ambiente introjetado de “ambiente interno”.
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O que escrevi até aqui está bem fundamentado em Winnicott. A partir daqui, vou tirar algumas consequências das propostas desse autor, propostas que o seu texto permite, no meu entendimento, embora não explicite.
Continuando então: em quê consiste esse ambiente interno? basicamente, ele compõe-se de algo que atua como uma espécie de “mãe substituta”, uma instância capaz de nos “cuidar”, da mesma forma que nossa mãe nos cuidava. Mas, mais importante do que isso: ele carrega consigo também uma imagem do DESTINATÁRIO dos cuidados da mãe, isto é, há nesse ambiente interior algo como uma representação daquilo que, depois, chegaremos a chamar de “EU”.
– “Como assim?”, pergunta o leitor; “Como é que o ‘EU’ vai ser introjetado a partir do ambiente EXTERNO?” Sim, é aí mesmo que eu queria chegar: ao introjetar “o ambiente”, penso que o bebê introjeta a relação inteira, tal qual ela acontece diante dos seus olhos: são então introjetados a mãe / pai com seus cuidados, o cuidado em si mesmo, e… o destinatário desse cuidado, o “Eu”.
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Porquê penso que o ‘destinatário’ dos cuidados será introjetado junto com o ambiente (a mãe)? Porque para o recém-nascido, AINDA NÃO EXISTE ALGO COMO UM “EU” PSICOLÓGICO, separado do ambiente; o que há é apenas um self-corporal, ainda muito incipiente e sobretudo NÃO INTEGRADO, isto é, formado aos pedaços. O bebê não “sabe” que aquelas experiências se referem ao seu próprio “eu”; ele as vive desintegradas, porque elas aconteceram desintegradas, separadas, NO TEMPO.
É só depois, com a CONTINUIDADE dos cuidados por parte do ambiente, com a continuidade DO PRÓPRIO AMBIENTE enquanto ponto de referência fixo, que a criança vai começar a construir para si mesma, internamente, algum tipo de continuidade. E então começará a integrar essas experiências dispersas como partes de um mesmo “EU”. E como ela fará para separar aquilo que é “seu” daquilo que é “do ambiente”? Resposta: ela não fará essa separação. Essas experiências iniciais, todas, sejam “do” bebê, sejam “do” ambiente – que ainda não estão separados -, serão integradas JUNTO com as experiências corporais, diretas, que compõe a base do “self”. Como resultado, teremos um “EU” que traz, em sua base, algo do ambiente que lhe serviu de sustentação.
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Com isso, o “EU” psicológico do bebê, o seu self consciente, aquele que pensamos quando dizemos “Eu”, começa a se constituir. O que creio ser fundamental nesse processo é que, introjetando a relação com o ambiente COMO SENDO PARTE DE SEU “EU”, o bebê introjeta TAMBÉM UM LUGAR PSÍQUICO AONDE ESSE “EU” JÁ EXISTIA. Qual é esse lugar? Ora, É O “EU” do bebê QUE EXISTIA PARA A MÃE.
O que creio ser uma consequência não explicitada por Winnicott é que, ao introjetar como parte de seu “EU” esse outro “EU” que já existia para a mãe, é como se o sujeito introjetasse também um olhar DESDE FORA sobre si mesmo. ELE PASSA A SE OLHAR DA MESMA FORMA QUE A MÃE OLHAVA PARA ELE, ou seja, ele introjetou o olhar da mãe (do ambiente) sobre si mesmo. Só que agora ele não diz mais: “esse é o olhar da mãe”, mas sim “esse é o MEU olhar”…
Para dizer isso de outra forma ainda: nossa consciência de “nós mesmos” tem um ESTRUTURA que faz pensar numa relação objetal; nós nos olhamos à nós mesmos como se fôssemos duas coisas ao mesmo tempo: UM, a coisa (ou o lugar) que olha, e OUTRO, a coisa que é olhada, vista. O que estou propondo é que essa estrutura RELACIONAL do sujeito com ele mesmo, essa estrutura em espelho ou reflexiva, nada mais é do que o resultado dessa introjeção do ambiente preconizada por Winnicott.
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Algo assim acontece ainda na vida adulta, quando nos apaixonamos: de certa forma, o enamorado SE IDENTIFICA com o objeto amado, e passa a se comportar como se ele – o objeto – fosse mais importante até do que ele, o apaixonado. Ele assume os valores do objeto, o objeto lhe parece a medida de todas as coisas, e, ponto fundamental, aquele que ama ASSUME A PERSPECTIVA DO OBJETO INCLUSIVE SOBRE SI MESMO.
Se o objeto responde à paixão afirmativamente, o amante fica todo feliz; mas se a paixão é respondida com frieza, o amante fica extremamente abatido, como se ELE MESMO ESTIVESSE SE REJEITANDO. Numa palavra, o apaixonado toma para si a perspectiva do objeto, e age como se essa perspectiva fosse a sua; se o objeto o denigre, ele se auto-denegrirá; se o objeto o enaltece, ele se auto-enaltecerá.
Se agora transpusermos essa mesma estrutura para a relação entre o bebê e seu ambiente (sua mãe), poderemos talvez imaginar a intensidade da identificação que aí ocorre, na medida em que no bebê ainda não há um “EU” estruturado que possa equilibrar as forças em jogo.
“Introjetar o ambiente externo” consistiria, então, em algo como um “apaixonar-se pelo ambiente”, assumir sua perspectiva. E aí teríamos a base dessa experiência tão fundamental, o “ter consciência de si mesmo”.
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