Posto na sequência um resumo do primeiro capítulo desse belíssimo livro de Antônio Damásio, que busca encontrar as bases neurais do que seriam nossas experiências de ‘SELF’ e de ‘CONSCIÊNCIA’.
Há vários pontos em comum com diversas abordagens psicológicas, desde Freud e William James até o comportamentalismo e a esquizoanálise – menção especial à ESPINOSA. Há também diversos pontos em desacordo com a tradição psico-filosófica.
Como sempre, acredito que mais um ponto de vista é algo salutar para a psicologia, mesmo que venha destruindo tudo. A meu ver, a psicologia – e em especial, a psicanálise – erra ao NÃO se deixar testar ou fundamentar pelo método científico. Certamente a ciência não é o único tipo de conhecimento, mas também não vejo porque teria que ser o único absolutamente desconsiderado.
Muito resumidamente, Damásio propõe que nosso sentido de “SELF” se constrói sobre a base dos mapas neurais que controlam a homeostase do corpo a cada instante. Esses mapas criariam uma representação do estado do corpo no cérebro, e essa representação possibilitaria o que percebemos como sendo o “EU”, nosso sentido do SELF.
Dada essa base, a consciência seria um tipo de conhecimento específico, vinculado a esse SELF e à OBJETOS QUE ALTERAM O ESTADO DO CORPO. Numa palavra, ao entrar em relação com o mundo, o corpo se vê afetado – alterado – pelas coisas, e ESSA ALTERAÇÃO VIRA CONSCIÊNCIA – consciência do objeto, ou mais precisamente, consciência da relação entre o corpo e um objeto.
Assim, Damásio consegue vincular a consciência à homeostase, ao esforço do organismo para manter seu estado interno dentro dos limites compatíveis com a vida, ao mesmo tempo em que oferece um enraizamento plausível para o SELF.
Confesso que a ideia parece simples DEMAIS. Ao mesmo tempo em que resolve inúmeros problemas ou saias justas da metafísica, parece prover uma noção de consciência um tanto pobre. Na verdade, se tivesse que fazer uma crítica apressada do livro, diria exatamente isso: que ele propõe uma ótima noção de como se forma um SELF a partir do corpo, mas não uma noção de consciência – seu conceito de consciência mal se distingue daquilo que constituiria o SELF. Mas trata-se de uma crítica apressada, talvez um reflexo, como se uma martelada tivesse sido dada em meu “joelho teórico”. A crítica, assim como o livro, ainda precisam de um certo tempo de DIGESTÃO.
Enfim, um ótimo livro, pela riqueza de dados e pela clareza com que apresenta suas hipóteses e descobertas. Certamente algo com potencial para gerar nas disciplinas conexas – psicanálise, estou falando com você! – uma grande e fecunda discussão.
***
“O MISTÉRIO DA CONSCIÊNCIA: DO CORPO E DAS EMOÇÕES AO CONHECIMENTO DE SI”
Antônio Damásio
tradução Laura Teixeira Motta;
revisão técnica Luiz Henrique Martins Castro –
2ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2015
OBS:
- as frases entre aspas são cópias literais do texto;
- as frases sem aspas são minhas. Geralmente as deixei em itálico.
- O número no final dos parágrafos corresponde à página do livro.
- Coloquei todos os títulos em letras maiúsculas, mesmo que nada seja aproveitado da sessão específica que esse título delimita.
- quando eu encontrar uma definição explícita, vou destacar ela abaixo do parágrafo, em negrito
- sublinhei os trechos que considerei mais importantes (e as vezes deixei ainda em caixa alta, kkk)
PARTE 1: INTRODUÇÃO
SAIR À LUZ
“Meu objetivo específico é examinar as circunstâncias biológicas que permitem a transição do ‘escuro’ da inconsciência à luz da consciência” (15)
“Embora eu NÃO veja a consciência como o ápice da evolução biológica, penso que é um momento decisivo na longa história da vida (16)”
Conta uma história sobre como a consciência nos permite SABER que estamos sofrendo ou sendo humilhados, mas tbém nos permite nos identificarmos com os outros – e ajudá-los (16)
AUSENTE SEM TER PARTIDO
Conta a história de um paciente que tinha episódios de “ausência”; simplesmente parava o que estava fazendo e ficava absorto em si, isolado, não respondia a nada; no entanto, mantinha reflexos, era capaz de caminhar e até de beber uma xícara de café. (17)
“por um breve período […] aquele homem sofreu um comprometimento da consciência […] ele teve uma crise de ausência seguida por automatismos associados à crise de ausência, duas dentre as diversas manifestações da epilepsia” (17)
“o que eu acabara de ver […] era muito espantoso. O homem não desabara no chão em estado de coma nem adormecera. Ele ao mesmo tempo estava ali e não estava, sem dúvida desperto, parcialmente atento, agindo, fisicamente presente mas pessoalmente desaparecido” (18)
“penso agora ter presenciado uma transição muito abrupta entre uma mente plenamente consciente e uma mente privada do sentido do self[…] Durante o período do comprometimento […] sua capacidade básica de atentar para os objetos e de orientar-se no espaço esteve preservada […] mas seu sentido do self e do conhecimento foi suspenso” (18)
O interesse dele pela consciência veio de dificuldades em seu trabalho sobre as emoções (19)
“Eu compreendia razoavelmente bem como diferentes emoções eram induzidas no cérebro […]. Também podia imaginar como a indução de emoções e as consequentes alterações físicas que em grande medida constituem um estado emocional eram sinalizadas em várias estruturas cerebrais – (o que dá a base do sentimento) […]. Mas não conseguia entender como o organismo portador da emoção podia tornar-se ciente daquele substrato cerebral” (19)
“Defrontara-me com o obstáculo da consciência. Especificamente, com o obstáculo do self, pois algo como um sentido do self era necessário para produzir os sinais que levam um organismo a ter o conhecimento de que está sentindo uma emoção” (19)
O PROBLEMA DA CONSCIÊNCIA
“Considero o problema da consciência uma combinação de dois problemas […]. O primeiro é entender como o cérebro […] engendra os padrões mentais que denominamos […] as imagens de um objeto […]. Imagem designa um padrão mental em qualquer modalidade sensorial […] Esse primeiro problema da consciência é o problema de como obtemos um “filme no cérebro”” (19/20)
“Vejamos agora o segundo problema da consciência: Como, paralelamente ao engendramento de padrões mentais para um objeto, o cérebro também engendra um sentido do self no ato de conhecer?” (20)
Dá o exemplo da leitura: enquanto leio essas páginas, minha mente exibe, ao mesmo tempo, algo mais, suficiente para indicar que SOU EU quem estou lendo (20)
“Além dessas imagens existe também essa outra presença que significa você, como observador das coisas […] Existe a presença de você em uma relação específica com algum objeto[…] Procurarei mostrar que a forma mais simples dessa presença é também uma imagem, uma imagem do tipo que constitui um sentimento. Dessa perspectiva, a presença de você é o sentimento do que acontece quando seu ser é modificado pelas ações de apreender alguma coisa” (20/21)
“A consciência […] é o padrão mental unificado que reúne o objeto e o self” (21)
ABORDAGEM DA CONSCIÊNCIA
MENTE, COMPORTAMENTO E CÉREBRO
“A consciência é um fenômeno inteiramente privado, de primeira pessoa […]. A consciência e a mente, porém, vinculam-se estreitamente a comportamentos externos que podem ser observados por terceiras pessoas […] A ciência da mente baseia-se nessa incontestável correlação entre o privado e o público. Felizmente, […] mente e comportamento também se correlacionam estreitamente com as funções dos organismos vivos […] O poder dessa triangulação de mente, comportamento e cérebro é evidente” (22/23)
comenta que O desenvolvimento de novas técnicas permite hoje correlacionar determinado comportamento não só a um correlato mental, mas também a marcadores específicos de estrutura ou atividade cerebral (23)
REFLEXÕES SOBRE DADOS NEUROLÓGICOS E NEUROPSICOLÓGICOS
“Observações neurológicas e experimentos neuropsicológicos revelam muitos fatos que foram ponto de partida para as ideias aqui apresentadas. O primeiro fato é que alguns aspectos dos processos da consciência podem ser relacionados à operação de regiões e sistemas cerebrais específicos” (24)
“O segundo fato é que a consciência e o estado de vigília, assim como a consciência e a atenção básica, podem ser distinguidos” (25) –
“O terceiro fato […] É QUE CONSCIÊNCIA E EMOÇÃO NÃO SÃO SEPARÁVEIS” (25)
“O quarto fato é que a consciência não é um monólito[…]: ela pode ser separada em tipos complexos e simples […]. O tipo mais simples, que denomino CONSCIÊNCIA CENTRAL, fornece ao organismo um sentido de self concernente a um momento – agora – e a um lugar – aqui […]. Por outro lado, o tipo de consciência complexo, que denomino CONSCIÊNCIA AMPLIADA […] fornece ao organismo um complexo sentido do self – uma identidade e uma pessoa – e situa essa pessoa em um ponto do tempo histórico individual” (25)
“A consciência central é um fenômeno biológico simples […], é estável no decorrer da vida do organismo, não é exclusivamente humana e não depende da memória convencional, do raciocínio ou da linguagem […] A consciência complexa […] evolui no decorrer da vida do organismo […] depende da memória convencional e […] também é intensificada pela linguagem” (25)
“A consciência ampliada não é uma variedade independente […]; ela se constrói sobre o alicerce da consciência central. Uma análise cuidadosa de doenças neurológicas revela que a consciência central pode permanecer ilesa mesmo havendo comprometimento da consciência ampliada. Ao contrário, o comprometimento da consciência central destrói todo o edifício da consciência” (26)
“Os dois tipos de consciência correspondem a dois tipos de self. O sentido do self que emerge na consciência central é o SELF CENTRAL, uma entidade transitória, incessantemente recriada para cada objeto com o qual o cérebro interage. Nossa noção tradicional de self, porém, está ligada à ideia de identidade, e corresponde […] ao SELF AUTOBIOGRÁFICO. […] Os dois tipos de self são interrelacionados” (26)
“Um quinto fato: a consciência é muitas vezes explicada simplesmente em termos de outras funções cognitivas, como linguagem, memória, razão […]. Embora essas funções realmente sejam necessárias para que os níveis superiores da consciência operem, […], elas não são necessárias para a consciência central” (26)
“A atenção não é suficiente para a consciência” (27)
“Uma teoria da consciência NÃO deve ser apenas uma teoria sobre como o cérebro cria cenas mentais integradas e unificadas […] Essas cenas não existem no vácuo. Acredito que são integradas e unificadas EM FUNÇÃO da singularidade do organismo” (27)
A BUSCA DO SELF
“[só vislumbrei uma solução para o problema do self] depois que comecei a ver o problema da consciência em função de dois atores principais: o organismo e o objeto […] As relações entre organismo e objeto são os conteúdos do conhecimento que denominamos consciência. Vista dessa perspectiva, a consciência consiste em construir um conhecimento sobre dois fatos: um organismo está empenhado em relacionar-se com algum objeto, e o objeto nessa relação causa uma mudança no organismo” (28)
“Nessa estrutura, entender a biologia da consciência torna necessário descobrir como o cérebro é capaz de mapear tanto os dois atores como as relações que eles mantêm entre si” (28)
“O problema geral da representação do objeto não é especialmente enigmático” (28)
“Do lado do organismo, porém, a situação é bem diferente” (28)
Dá um exemplo: se tiro os olhos do texto e olho o que tenho à minha frente, numerosas regiões DIFERENTES do cérebro serão ativadas, em virtude das diferentes disposições motoras assumidas pelo organismo; por outro lado, “várias regiões de seu cérebro cuja tarefa é regular o processo da vida […] NÃO MUDARAM NADA. […] O corpo continuou sendo “objeto” todo o tempo […] Porém […] o grau de mudança ocorrida foi ínfimo. Por quê? Porque apenas um reduzido conjunto de estados do corpo é compatível com a vida, e o organismo é geneticamente projetado para manter esse conjunto reduzido” (29)
“Algumas partes do cérebro são livres para perambular pelo mundo […] em contrapartida, outras partes do cérebro, as que representam o próprio estado do organismo, não são livres para perambular” (29)
“Hà várias razões por trás dessa ASSIMETRIA. Primeiro, a composição e as funções gerais do corpo vivo permanecem as mesmas, qualitativamente, durante toda a vida. Segundo […] o estado interno do corpo tem de ser relativamente estável. ][…] Terceiro, esse estado de equilíbrio é governado a partir do cérebro” (29)
ASSIM, É COMO DIZER QUE “o cérebro contém dentro de si uma espécie de MODELO DO TODO” (30)
“CHEGUEI À CONCLUSÃO DE QUE O ORGANISMO, conforme representado no interior do cérebro, é um provável precursor biológico daquilo que finalmente se torna o elusivo sentido do self. As raízes profundas do self […] encontram-se no conjunto de mecanismo cerebrais que de modo contínuo e inconsciente mantém o estado corporal dentro dos limites estreitos […] Denomino PROTO-SELF o estado de atividade no conjunto desses mecanismos”. (30)
“ESSA É A QUESTÃO CRUCIAL […] NA ATIVIDADE DE ‘RELACIONAR’ DA CONSCIÊNCIA – o objeto e o organismo – O ORGANISMO É REPRESENTADO NO CÉREBRO […] E ESSA REPRESENTAÇÃO ESTÁ VINCULADA À MANUTENÇÃO DO PROCESSO DA VIDA” (30)
POR QUE PRECISAMOS DA CONSCIÊNCIA
“a sobrevivência depende de encontrar e incorporar fontes de energia e de prevenir todos os tipos de situações que ameaçam a integridade dos tecidos vivos […] Sem ações, organismos como o nosso não sobreviveriam […] Sem a orientação das imagens, as ações não nos levariam muito longe […] As imagens permitem-nos escolher entre repertórios de padrões de ação” (31)
“As imagens nos permitem inventar novas ações a serem aplicadas a situações inéditas e fazer planos para ações futuras […] então um mecanismo capaz de maximizar a manipulação eficaz de imagens […] conferiria uma enorme vantagem […] A consciência é precisamente esse mecanismo” (31)
“A inovação pioneira permitida pela consciência foi a possibilidade de ligar o santuário íntimo da regulagem da vida ao processamento de imagens […] foi a possibilidade de fazer com que o sistema regulador da vida […] influenciasse o processamento das imagens que representam as coisas” (31)
O INÍCIO DA CONSCIÊNCIA
“Comecei a pensar sobre os mecanismos que o cérebro poderia usar para representar a relação entre objeto e organismo […] Minha teoria é que nos tornamos conscientes quando os mecanismos de representação do organismo exibem um tipo específico de conhecimento – o conhecimento de que o próprio estado do organismo foi alterado por um objeto – quando esse conhecimento ocorre juntamente com a representação realçada de um objeto” (32)
Desde seus mais humildes princípios, consciência é conhecimento, conhecimento é consciência. (33)
ÀS VOLTAS COM O MISTÉRIO (nada)
ESCONDE-ESCONDE (34)
“As vezes usamos nossa mente não para descobrir fato, mas para encobri-los. Usamos parte da mente como uma tela para impedir outra parte de perceber o que se passa em outro lugar.[…] Uma das coisas que a tela oculta com mais eficácia é o corpo, nosso próprio corpo, e com isso me refiro a seu íntimo, seu interior […], os estados interiores do corpo, aqueles que constituem o fluxo da vida enquanto ela segue” (34) – OU SEJA, OS ESTADOS NOS QUAIS SE BASEIA O SELF-CENTRAL
o caráter vago e intangível das emoções “provavelmente é um sintoma desse fato […] . De outro modo, saberíamos com facilidade que emoções e sentimentos relacionam-se tangivelmente ao corpo” (35)
discute que talvez seja mais vantajoso concentrar nossos recursos nas imagens relacionadas ao “fora”, do que ao estado de nosso próprio corpo, mas que talvez, antigamente, a vida interior tenha sido mais facilmente percebida. Cita como exemplo a sabedoria dos antigos que denominaram o que chamamos de “mente” pela palavra psique, que significava respiração e sangue (35)
“Penso que o fluxo e refluxo de estados internos do organismo […] constitui o pano de fundo para a mente […], o alicerce para o self. Julgo ainda que esses estados internos […] tornam-se SIGNIFICANTES NÃO-VERBAIS da boa ou má qualidade das situações” (35)
“A consciência começa quando os cérebros adquirem o poder […] de contar uma história sem palavras […]. A consciência emerge quando essa história primordial – a história de um objeto alterando de forma causal o estado do corpo – pode ser contada usando o vocabulário não verbal universal dos sinais corporais.” (36)
EM RESUMO: O MAPEAMENTO DO ESTADO CORPORAL CRIA CONSTANTEMENTE UMA ‘NARRATIVA’ (relativa a esse estado), MAS TAMBÉM RELATIVA AOS ENCONTROS COM OS OBJETOS (que alteram o estado do corpo). A CONSCIÊNCIA SERIA, na base, O RELATO TRANSFORMADO (sentido) DESSAS ALTERAÇÕES.
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