As tragédias gregas são até hoje vistas como algo especial. Estranhamente, elas existiram por apenas 150 anos – nem antes, nem depois, por milênios, algo do mesmo nível foi escrito.
Porquê só naquele tempo se escreveu assim? O quê fez com que naqueles 150 anos houvessem escritores tão acima da média, e também um público tão especial?
Segundo J.P. Vernant, em “O Momento histórico da tragédia na Grécia: algumas considerações sociais e psicológicas”[1],
“O momento da tragédia é, pois, aquele em que se abre, no coração da experiência social, uma distância bastante grande para que, entre o pensamento jurídico e social de um lado e as tradições míticas e heroicas de outro, as oposições se delineiem claramente […] Há uma consciência trágica da responsabilidade quando os planos humano e divino são bastante distintos para se oporem sem que, entretanto, deixem de parecer inseparáveis” (pg 04)
Numa palavra, a tragédia espelha um momento de transição muito particular: com o nascimento do direito e sua valorização da ação e da responsabilidade humanas, o grego antigo, que sempre se viu e se pensou a partir de um referencial divino, divide-se: pode pensar-se a partir ora de um referencial, ora de outro, até que, cento e poucos anos depois, o direito se imponha e já ninguém sinta o divino como algo real, entrelaçado com a própria vida.
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Na história, houve muitos momentos em que justamente esses dois planos colidiram novamente. Se abstrairmos dos termos exatos, quase seria possível resumir a história humana como um pacato inserir-se enquanto causa, abandonando causas divinas, externas ou sobrenaturais em favor de uma nova responsabilidade humana, recém adquirida.
Assim, por exemplo, o ‘ter filhos’ certamente foi um mistério por muitos séculos, algo atribuído à vontade divina, algo que não controlávamos. Mas logo descobriu-se métodos contraceptivos, e o mistério da concepção foi se laicizando; hoje, com pílulas do dia seguinte e anticoncepcionais em todo canto, passamos a ter controle sobre a contracepção, e o ‘ter filhos’ passou a ser responsabilidade eminentemente humana.
O mesmo pode ser dito de diversas doenças. Elas foram sempre vistas como efeitos da “vontade divina” – na falta de argumento melhor concluía-se que o doente ‘pecou’, e por isso adoeceu (ainda hoje existe algo disso no julgamento que se faz do doente, especialmente do doente mental). Mudaram os tempos e a evolução da medicina permitiu que passássemos nós, como sociedade, a decidir o destino das doenças (ao menos de algumas).
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Bom, e o que tem isso a ver com a psicologia? É que talvez a psicologia ocupe um lugar análogo aos que apresentei. Como a tragédia, imagino que ela expresse as tensões de uma mudança de orientação social, a passagem, mais uma vez, de um plano de orientação divina – aonde a religião ajudava a ‘significar’ o homem e o seu lugar no mundo – para um plano mais humano, aonde o homem tem de aprender a se responsabilizar por si em todos os espectros da vida.
Podemos apreender essa história com um passara de olhos na filosofia, vendo como, lentamente, a definição progressiva do que seria a consciência e o “EU” vão deixando espaço para algo que NÃO era propriamente ‘consciência’ ou “”Eu”, até chegarmos ao inconsciente e a tudo aquilo que existe antes do “Eu”, a todos os pré-requisitos do “Eu”.
Grosso modo isso praticamente define o que é a psicologia: psicologia seria esse saber sobre o homem, sobre aquilo que o constitui como “humano” em seu “ser” mesmo, em termos psíquicos. OU SEJA, aquilo mesmo que era definido pela religião, ou pelo lugar social de nascimento, na idade média.
Esse “ser”, esse cerne do humano, foi definido pela psicologia de diversas formas, mas pode-se dizer que todas elas incluem a relação com o outro como algo fundamental; a criação de uma capacidade de simbolização, de elaboração do vivido em termos tanto emocionais quanto linguísticos, e a capacidade de, a partir disso, criar para si uma história, uma narrativa de vida, aonde sua existência se inclua.
Creio que fica claro como essa criação de uma narrativa sobre o próprio lugar no mundo ocupa o mesmo plano que a narrativa divina ocupou em outros tempos. A grande questão é que, ao que parece, estamos começando a abandonar essa forma relacional ou “psicológica” de criação de narrativa, em prol de uma inserção no mundo muito menos “complexa” – e profunda, em favor de algo mais simples, mais raso.
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Creio ver isso surgir na forma como nossa sociedade valoriza o consumo como substituto para a relação. Não temos mais um Deus, um pai ou um amor, mas temos smartphones, e isso parece bastar; não nos relacionamos com a mesma profundidade e troca com o outro, mas temos suas curtidas nas redes sociais; sofremos talvez com a mesma dificuldade de existir que sempre acompanhou o humano, mas hoje temos remédios que nos tiram o sofrimento sem nenhum questionamento – e a sociedade parece impulsionar isso, como outra forma de consumo.
Dito de outra maneira, a nossa própria felicidade – nossa existência, se quisermos – virou objeto de consumo, virou mercadoria. E socialmente esse ‘uso mercantil’ do “si mesmo” parece ser valorizado. A psicologia ainda é uma das formas de “comprar” aquela existência que se busca – ou seja, uma forma de construir uma narrativa que enlace ao mesmo tempo nossa história e a história do mundo aonde nascemos, aquilo que temos e aquilo que queremos ter e ser -, mas ela é simplesmente difícil demais, demorada demais, cara demais. Tudo indica que será suplantada rapidamente, quando novos remédios ou técnicas mais precisas aparecerem.
E será a história da “tragédia” outra vez – ?
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NOTAS
[1] VERNANT, J. P, in “Mito e tragédia na Grécia antiga”, São Paulo: Perspectiva, 1999