No post anterior (link) falamos um pouco sobre como a religião, grosso modo, aplica-se a uma área da vida cultural que não poderia ser atendida pela tecnologia: trata-se do sentido pessoal, individual, de nossa existência.
O pressuposto dessa tese era simples: a religião buscaria reconstruir, na vida adulta, a mesma continuidade entre um ser humano e outro, a mesma plenitude de encontro que experimentamos quando éramos bebês. E essa continuidade não poderia ser atendida pela tecnologia.
Quando nascemos, nossa vida subjetiva ainda não se separava de nossa mãe e de seus cuidados; sentíamos tudo interligado. A fome que aparecia em mim e o seio que ela oferecia pareciam todos pertencer ao mesmo “ser”, que não era nem “eu” nem o “outro”, mas uma união de ambos. Vivíamos no outro, o outro vivia em nós.
Depois, claro, crescemos, e crescer é, em grande parte, aprender a separar-se, sustentar uma separação entre o “eu” e os “outros” – e também uma relação [1]. Entretanto, a memória desse período de diluição das diferenças, desse co-pertencimento, dessa comunhão do todo em nós – fica conosco, e age, segundo penso, direcionando o ser humano também na vida adulta.
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Senão, vejamos: o que pregam, mais ou menos, todas as religiões? O amor ao próximo, o ser não-violento, não egoísta, a tolerância para com o outro, o “age com os outros como desejas que ajam contigo mesmo”. Ou seja, olhados a uma certa distância, esses preceitos são como ‘substitutos’ daquela união mãe-bebê, daquela dissolução entre as diferenças, que buscam ao mesmo tempo reencontrar essa dissolução e recriar condições para sua existência na vida adulta.
Pois é claro que o egoísmo – o querer tudo para si – é contrário a esse ideal de união com o outro; da mesma forma a violência, que em geral é uma forma de reivindicar algo para si ou de reagir a perda de algo próprio; ser tolerante com o outro, agir em relação a ele como agimos conosco mesmo quase que equivale a dizer que “eu” e o “outro” somos a mesma pessoa. A grande justificativa de tudo isso? O amor ao próximo. “Ama ao próximo como a ti mesmo” resume, de certa forma, (toda?) a religião e aponta, em nosso modo de ver, diretamente para aquele início da vida psicológica, aonde o “Eu” ainda não existia separadamente, e o amor da mãe realmente justificava tudo.
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A grande questão levantada pelo post anterior, no entanto, dizia respeito à tecnologia e a sua capacidade de responder à demanda de sentido do ser humano. No meu modo de ver, o sentido existencial de nossa vida tem a ver com aquele início, com aquele momento mágico do desenvolvimento aonde o “Eu” se funde ao outro, vivendo numa harmonia que dilui todas as diferenças e – esse é o ponto – mal permite espaço para que surja algum questionamento.
Vivemos amalgamados ao outro; os cuidados do outro, o outro enquanto tal, são vividos como partes de mim. Não há conflito algum entre eu e o outro, simplesmente porque somos um só. Nas palavras de Winnicott, há uma sobreposição entre a experiência da criança (por exemplo, “estou com fome”) e a reação da mãe (por exemplo, oferecer o seio), de tal maneira que o bebê mal chega a perceber que ele e a mãe são coisas diferentes. Winnicott diz: “o bebê É o seio”. Enquanto durar essa correspondência, essa sobreposição, entre a experiência do bebê e os cuidados da mãe, não haverá oportunidade para a separação, para a delimitação de cada um, nem surgirão problemas, pois a mãe praticamente soluciona tudo o que o bebê deseja, naquele início da vida.
No entanto, pelo próprio desenvolvimento da criança, chega uma época em que a mãe já não precisa corresponder tão completamente às demandas dos filhos. Começa a haver um espaço maior entre a demanda (ex: estou com fome) e a resposta (ex: o seio). E o que preencherá esse espaço, esse vazio entre minhas demandas e a reação do outro? O EGO, ou, para dizê-lo de uma forma mais completa, toda uma rede de pensamentos destinada a ‘explicar’ o comportamento do outro, a entender porquê, afinal, o outro “não me completa” mais, como fazia antes; porquê, afinal, o outro é um “outro”; a explicar o outro.
Desde então, encontrar um sentido para o outro quase que equivale a encontrar um sentido para mim, para esse “EU”, agora separado. O que é quase o mesmo que dizer que a separação entre o Eu e o Outro constitui o início de nossa busca por sentido, por sentido existencial.
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Vimos que a religião foi uma das formas encontradas pela humanidade para responder a essa busca de sentido. Até onde posso ver, ela aponta na direção certa, e constitui, sem dúvida, um auxílio para aqueles que conseguem se encontrar através dela. A psicologia é outra das maneiras encontradas para responder a essa busca de sentido. Mas o que constitui uma novidade, e uma novidade inquietante, é perceber que hoje a tecnologia busca se impor como doadora de sentido existencial.
Basta ver o fetiche, a “adoração” – e o termo religioso não é sem razão – que as pessoas tem pelos smartphones. As igrejas estão vazias, mas a cada lançamento de um Iphone as pessoas fazem fila. O mesmo vale para carros, roupas de marca, joias… Se olharmos um pouco além, percebemos que o que encanta não é tanto o objeto em si, mas o olhar do outro: – a capacidade do smartphone de atrair o olhar do outro me encanta, por isso eu preciso dele; pois o olhar do outro responde minha inquietação existencial – e é só isso que me importa.
Outra forma de dizer isso: é a capacidade de controlar o olhar do outro aquilo que me encanta na tecnologia. Pois se eu quero relação, eu abro o chat, vou na rede social, procuro num aplicativo de encontros. Se eu não quero, eu simplesmente desligo. Eu comando minha exposição ao “outro” – ou pelo menos, acho que comando – de forma que o ‘outro’ se torna cada vez menos ‘outro’ realmente. E começa a ser mais parecido comigo. Inclusive porque eu posso escolher seguir apenas pessoas parecidas comigo.
A mesma lógica se aplica aos Facebooks da vida: as curtidas na minha foto simbolizam a aprovação do outro. Os ‘dislikes’ significam mais ou menos o mesmo: é o olhar do outro que está ali, a me significar. Assim temos uma ‘relação’ que não é propriamente uma relação: somente me relaciono com o outro através desses objetos ‘fetiche’ – seu like, seu dislike, o smartphone, tal canal no youtube, etc. O objeto ‘fetiche’ atua como um substituto daquela mãe que nos completava, daquela relação de continuidade entre o Eu e o Outro. Ele nos ‘completa’ – aparentemente – ao nos alienar numa relação de busca constante pelo olhar do outro (transformado num ‘duplo’ do EU). Só que, assim como a ‘completude’ da relação com a mãe só foi possível porque ainda não havia separação mãe-bebê, a pretensa completude da relação tecnológica com o outro também se alicerça nessa ausência de separação.
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O outro como “outro”aparece pouco nas redes sociais, e quando aparece, é rechaçado. O “outro” sempre foi o problema da existência humana, mas até agora era necessário encontrar um modo de se relacionar com ele. Afinal, nossa capacidade de apreender a realidade enquanto tal é tributária dessa relação (link). O real, na medida em que não se importa conosco e apenas segue suas regras, é a expressão máxima do “outro“. Nossa capacidade de tolerar o real anda junto com nossa capacidade de tolerar o “outro”, porque ambos se apoiam em nossa autonomia, nossa independência. Não havendo autonomia, tampouco há tolerância para com o real em sua face de ‘outridade’.
E o que é que a tecnologia, hoje, nos oferece? Justamente a promessa de que dominaremos o real. A ciência alcançou tamanho sucesso que nos permite pensar num futuro aonde a morte seja uma questão de escolha, as doenças não existam e toda limitação, a rigor, seja uma questão de tempo, de adequação da tecnologia. Ou seja, mesmo o real, enquanto expressão máxima do ‘outro’, tende a ser exorcizado.
Fico imaginando aonde isso iria nos levar. O desenvolvimento do EU enquanto indivíduo separado, por certo, sempre foi algo difícil. A própria persistência da religião por tanto tempo indica o quanto essa ‘re-ligação’ – ‘religião’ vem de religare – nos é importante. É claro que a separação do indivíduo de seu ambiente materno inicial tem o seu “ônus”, pois é condição para que soframos com a inveja, o ódio, a competição, a agressão. Por outro lado, sem essa separação não viveríamos realmente o amor, a responsabilidade, a autonomia, a vitória como sensação individual…
Talvez a alma humana tenha seus limites, isto é, talvez sua plasticidade não vá além de certo ponto, e em algum momento nos vejamos forçados a retomar algo desse desenvolvimento. Talvez não. Nesse caso imagino uma sociedade com sujeitos cada vez mais poderosos e intolerantes, tornados assim pela tecnologia. Sua subjetividade ‘completa’ e sem a necessidade do outro tornaria tanto a religião quanto a psicologia dispensáveis. Cada um seria um “Deus” tecnológico cheio de possibilidades – desde que vivendo em um círculo cuidadosamente delimitado, sem contato com o vizinho ou com a realidade, por serem “outro” demais – e a sociedade seria apenas a soma dos indivíduos separados. E nada mais.
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Notas
[1] Detalhe importante: uma relação só é possível quando há separação (senão não haveriam dois a se relacionar). Talvez por isso muitas religiões apontam que a beatificação completa é o estar-um com Deus, isto é, a diluição da separação entre Deus e o homem