Escrevi este texto a partir de um ótimo vídeo do professor Alexandre Esclapes, disponível no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=DBny67ezf20. Recomendo muitíssimo o canal dele no Youtube (https://www.youtube.com/channel/UC5C-PA5h8s-IoY6vFdWGXVg) , tanto pelo ótimo conteúdo quanto pela maneira simples – e rica ao mesmo tempo – de apresentá-lo.
Dividi o texto em duas partes, para não ficar um texto grande demais, sendo que na primeira parte apresento brevemente a “grade” e discuto os elementos que compõem o eixo vertical da grade, ou o eixo da gênese / evolução do pensamento. Na segunda parte (link) discuto as colunas da grade, ou os vários usos que um pensamento pode ter. Encerro a parte dois apresentando minha visão da utilidade da grade e sua importância para o pensamento psicanalítico.
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A “grade” de Bion é uma ferramenta que o autor criou para tentar categorizar o que acontecia na análise entre analista e paciente. A ideia, se entendi bem, é buscar situar em que nível dentro de uma “gênese” (ou evolução) do pensamento algo ocorreu, e a qual tipo de uso isso se prestou, sempre na visão do analista.
Assim, o eixo vertical da grade conteria três tipos de gênese do pensamento (ou da ideia), enquanto o eixo horizontal descreveria vários usos possíveis desse pensamento. Começando pelo eixo vertical, teríamos a primeira tríade, englobando os elementos beta (eixo “A”), os elementos alfa (eixo “B”) e culminando nos pensamentos oníricos (eixo “C”). A segunda tríade se iniciaria na pré-concepção (eixo “D”) e culminaria no conceito (eixo “F”) – sinônimo de pensamento – ou na concepção (eixo “E”) – sinônimo de crença. Finalmente, teríamos os eixos “G” e “H”, dos quais falarei mais adiante. Essas tríades não são contínuas (o pensamento não evolui do onírico [eixo C] para a pré-concepção [eixo D]; na pré-concepção se inicia uma nova gênese).
O Professor chama a atenção para o fato de que, em Bion, as coisas tem sempre um uso. Temos, então, um foco na ideia e no seu uso, diferentemente de Freud, onde o foco seria a ideia e a energia.
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ELEMENTOS BETA: Elementos beta são elementos que não podem ser processados (pensados) pelo aparelho psíquico, seja por falhas no aparelho mental, seja por características do próprio elemento. São o primeiro tipo de elemento na mente, e, não sendo processados, não podem ser “resolvidos” no mental, podendo apenas ser descarregados diretamente no corpo ou projetados. Elementos beta são elementos que não estão disponíveis para pensamento ou ligação entre si, não formam uma “narrativa” (uma sequência de elementos vinculados), não podem ser usados pelo aparelho psíquico.
Uma consequência importante do fato de não serem processados é que os elementos beta NÃO PODEM SER ESQUECIDOS (pois “esquecer” implica em elaboração mental, em processamento). Assim, alguns tipos de repetição do paciente podem estar relacionada a algo não “digerido”, não processado, pelo seu aparelho psíquico. Note-se que “lembrar” também implica em elaboração / processamento anterior, com o quê concluímos que o elemento beta é um tipo de elemento que não pode ser nem esquecido, nem lembrado (Talvez a ideia de “recalcado” aproxime a proposta bioniana daquilo que Freud chegou a estruturar do aparelho mental).
Como em Freud, para Bion todo elemento beta se inicia na consciência, como uma percepção. A grande diferença está na evolução possível dessa percepção: em Freud, uma percepção chega ao inconsciente via de regra através do recalque; em Bion, chegar ao inconsciente depende de amadurecimento mental. Ou, para dizer o mesmo de outra forma: chegar ao estado “inconsciente” seria o grau máximo de elaboração de um elemento (o que vai ao encontro do que falaremos sobre o eixo do “pensamento onírico”, mais abaixo).
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ELEMENTOS ALFA: Elementos alfa são aqueles elementos que puderam ser processados – isto é, transformados, elaborados -, em alguma forma útil ao aparelho psíquico, que então pode utilizá-los para criar narrativas, pensamentos, sentidos (encadeando vários elementos alfa entre si). São os menores elementos do aparelho de pensar.
A passagem do elemento beta para o elemento alfa se dá através de uma função que Bion chamou de FUNÇÃO ALFA, que é basicamente essa capacidade de elaborar, de digerir, o elemento. Um exemplo clássico é o da mãe, que interpreta o choro do bebê – até então um elemento beta para ele, algo sem sentido, que não produz nada, não se liga com nada – transformando-o em algo com sentido, através de sua ação de cuidado e de interpretação. Expandir a função alfa (ou até mesmo constituí-la) seria um dos objetivos centrais no tratamento psicanalítico[1].
Algo que pode chamar a atenção com relação à “função alfa” é a relativa INSATURAÇÃO dos conceitos de Bion. De fato – e o professor comenta isso no vídeo – Bion agia assim propositadamente, buscando criar conceitos insaturados, isto é, não definidos exaustivamente, de saída, para que seu sentido pudesse ir se moldando no uso, no funcionamento concreto, real, do conceito em seu encontro com a prática.
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Seguindo, teríamos os PENSAMENTOS ONÍRICOS, que seriam, basicamente, aglutinações dos elementos alfa. Tudo que comentamos até aqui – elementos beta, alfa e pensamentos oníricos – ainda estaria em nível inconsciente. O pensamento onírico ocorreria inclusive durante o dia, em Bion, e formaria um narrativa constante em nossa mente que separaria o consciente do inconsciente. Para Bion, muitos problemas derivam da impossibilidade de se efetuar essa separação ICS – CS – isso seria característico da psicose, por exemplo.[2]
O MITO seria uma ELABORAÇÃO IMAGINATIVA de uma função social.
O SONHO seria uma ELABORAÇÃO IMAGINATIVA do corpo. Notar como isso é próximo de Winnicott, que definia o mental exatamente como essa “elaboração imaginativa das experiências do corpo”. Ou seja, para Bion, o mental é quase equivalente ao sonho, ao onírico – sonhar o próprio corpo é constituir uma “mente”, definição que, ademais, se aproxima da famosa definição de Espinosa – para quem a mente é uma “ideia do corpo”[3].
Aqui fecharíamos a primeira tríade, ou a primeira “gênese” do pensamento, que começa como elemento beta, vira elemento alfa através da função alfa e então, aglutinando vários elementos alfa, se torna sonho (pensamento onírico). O sonho, em Bion, não é tanto um sintoma, como em Freud (um desejo disfarçado), mas sim uma POSSIBILIDADE DE ESQUECIMENTO, ou seja, a elaboração final daquilo que começou como beta (algo não processado, e então impossível tanto de esquecer como de lembrar).
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No eixo “D” começamos uma outra tríade (a qual, repito, não é uma continuidade da primeira). Temos então uma PRÉ-CONCEPÇÃO, que seria uma expectativa do sujeito em relação à realidade. A criança, por exemplo, quando nasce, tem uma expectativa de encontrar algo que a alimente (expectativa não quer dizer consciência); quando a mãe oferece o seio, dá-se uma REALIZAÇÃO daquela pré-concepção da criança. (Eu entendo a pré-concepção como uma espécie de “expectativa quase vazia” – ou insaturada -, porque o bebê não concebe exatamente que um seio vá lhe alimentar, mas provavelmente concebe algo parecido a um seio. A ideia de PRÉ-concepção evoca em mim essa abertura, essa indefinição relativa da concepção).
A REALIZAÇÃO seria, então, o encontro de uma pré-concepção com uma realidade. Uma realização POSITIVA aconteceria quando o encontro com uma realidade realmente acontece (ex: o seio é oferecido). Já uma realização NEGATIVA ocorreria quando o encontro esperado NÃO ACONTECE (ex: a mãe não dá o seio, por qualquer motivo).
A realização POSITIVA gera CRENÇA (na grade, “crença” seria o eixo “E”, “concepção”); o bebê acredita, a partir daí, que o seio sempre virá quando ele chamar, por exemplo. Já a realização NEGATIVA geraria PENSAMENTO (eixo “F” da grade, “Conceito”): isto é, uma tentativa de levar a realidade em consideração, de tentar ver o que acontece para alterar uma realidade frustrante.
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Conforme comenta o professor Alexandre no vídeo, TODA REALIZAÇÃO É INCOMPLETA; ou seja, nenhuma realização é capaz de resolver tudo, de satisfazer todas as expectativas, as pré-concepções. Assim, em toda realização sempre haverá um resto, um pedaço de insatisfação que poderá gerar pensamento. A condição para que isso aconteça é que o sujeito possa SUPORTAR A FRUSTRAÇÃO ENVOLVIDA.
Dito de outro modo: toda realização negativa (ou tudo aquilo que não foi satisfeito numa realização positiva) envolve frustração. Mas essa frustração pode ser negada, não elaborada, como se fosse um elemento beta, por exemplo (não sou Eu que tenho um problema; é a sociedade, etc), ou pode ser sustentada – e aí o pensamento será essa capacidade de encarar a realidade da situação para procurar transformá-la. Note-se que a condição para isso é sustentar que a situação de frustração realmente existe.[4]
O pensamento que decorre dessa frustração sustentada É O PENSAMENTO CONSCIENTE. De onde poderíamos concluir – não tenho certeza sobre esse ponto – que nossa vida consciente seria, ao menos em parte, FRUTO DE EXPERIÊNCIAS DE FRUSTRAÇÃO que conseguimos sustentar. Ou seja, na medida em que estamos conscientes, pensando sobre as coisas, estamos sustentando alguma frustração, alguma realização negativa de nossas pré-concepções. Já experiências inconscientes poderiam implicar em incapacidade de sustentar a frustração envolvida.
Um último comentário sobre esse ponto: a ideia de pré-concepção envolve também a ideia de desejo, de anseio, expectativa; e a ideia de ‘pensamento’ envolve uma abertura para a realidade. Assim, a incapacidade de sustentar a frustração de nossos desejos implica num relativo fechamento à realidade (que nos protege da frustração, mas tem seu preço…). Enfim, aqui fechamos a segunda tríade (eixos D, E e F).
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O Eixo “G” seria a visão que tenho de mim mesmo, as coisas que acredito saber sobre mim. O eixo “H” seriam emoções que não precisam de realização. Como isso não aparece na clínica, também não aparece preenchido na grade.
(continua).
link para a segunda parte: https://euemtorno.wordpress.com/2018/05/08/a-grade-de-bion-esquema-a-partir-de-ale-esclapes-parte-2/
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Notas:
[1] Conforme Antonino Ferro.
[2] Conforme Tales Ab’Saber, em “O Sonhar Restaurado”, Ed. 34.
[3] Ver Damásio, A., “Em busca de Espinosa”.
[4] No vídeo, o professor Alexandre não comenta COMO se dá essa sustentação da frustração. Com base em Winnicott posso arriscar que “sustentar a frustração” envolve ter desenvolvido uma boa capacidade de ‘função alfa’, ou, o que vem a ser a mesma coisa, ter tido uma boa maternagem – ter introjetado, na relação com o ambiente, aquelas qualidades que permitiam ao ambiente elaborar as angústias da crianças.
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