(Este post é a terceira e última parte de uma série onde procurei comentar a peça “Filoctetes”, de Sófocles, entendendo-a como relacionada à maneira especificamente humana de integrar no seio da cultura e da sociedade o “selvagem” que, embora exterior ao civilizado, é também parte do humano – o que o grego não negava. Aqui e aqui as duas primeiras partes).
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A trama da peça desenrola-se basicamente em torno da ‘reconversão’ ou reintegração de Filoctetes ao mundo civilizado. Essa reintegração acontece em vários níveis, e um deles, talvez o primeiro, acontece quando ele ouve, depois de tanto tempo, a língua grega, logo que os gregos desembarcam na ilha em busca do herói/selvagem [1]. A cena não deixa de inspirar simpatia:
“Filoctetes:
Forasteiros,
quem se encoraja a manobrar os remos
rumo à terra sem porto e sem morada?
Ignoro estirpe e pátria de onde vindes.
Quem sois? O estilo do vestuário evoca
em mim a Hélade adorável! Quero
ouvir como falais. Perplexidade
ou medo não pretendo despertar
com meu aspecto rude. Só, tristíssimo,
um deserdado, um traste sem amigos,
mereço piedade. Sois de paz?
Seria um erro sonegar-me isso,
como eu, calar quem sou, um grave equívoco.
Neoptólemo:
Começo pelo início: somos gregos,
se é isso o que desejas conhecer.
Filoctetes:
Que som sutil! Depois de tanto tempo,
ouvir desse rapaz a doce música!” [2]
Como vemos, a linguagem, a língua materna, parece música aos ouvidos do ‘selvagem’ Filoctetes, privado por tanto tempo desse som. A peça opõe então o simples ruído da vida animal à ‘música’ da língua materna, que ressoa não só a cultura que se deixou mas o lugar de sujeito que se ocupava nessa cultura.
Qual seria o sentido de dizer ‘quem se é’ quando se está sozinho numa ilha? Aquilo que alguém “é” ou não é simplesmente não importa na vida selvagem; importa apenas aquilo que se faz, a atitude concreta de cada momento. Entretanto, quando se inicia o reencontro com a civilização, Filoctetes entende que seria um “grave equívoco” calar “quem se é” – pois agora existe alguém que pode ouvi-lo; que pode dar sentido àquilo que se é. Numa palavra, o “outro” é essencial para que se possa dizer (ou lembrar) quem se é – até para si mesmo.
Por contraste, o diálogo com Neoptólamo permite ainda que o herói se reconheça privado de reconhecimento, o qual, como uma espécie de imortalidade do sujeito na cultura, era extremamente valorizado pelo grego antigo[3] [4].
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Retornarei à questão do reconhecimento mais adiante. Por agora, tomemos outra oposição como paradigmática do movimento que a peça parece querer destacar aos nossos olhos: a que se dá entre o orgulho ferido do herói, por ter sido abandonado à própria sorte por Ulisses, e a necessidade de reintegrar-se à cidade passando por cima de seu orgulho.
O orgulho estaria aqui como representante do pólo “selvagem” da história. Pelo menos ao ultrapassar uma certa medida, ele simplesmente não cabe nos marcos delimitados da vida da cultura, porque implica numa supervalorização de si não vinculada ao lugar social que ocupamos – ou seja, àquilo que somos aos olhos dos outros.
Creio que a peça opõe então o orgulho como “supervalorização que isola” ao orgulho que advém do reconhecimento social de nossos feitos. Ou seja, ao retornar para o seio da cultura e aceitar ajudar os guerreiros, Filoctetes recupera um lugar de valorização pessoal, mas agora essa valorização ocorre integrada ao olhar da cidade. Não se trata mais de um orgulho auto-sustentado, mas de um orgulho que se sustenta no olhar dos outros sobre si – de um orgulho “civilizado”, diríamos.
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Filoctetes, na ilha, sozinho, pode ser tão orgulhoso de si quanto quiser: esse orgulho ‘selvagem’ não depende de outrem, e funciona numa espécie de “auto-erotismo”, autosustentação narcísica. Oposto a isso vemos a figura do orgulho como advindo do reconhecimento social. Note-se que um só funciona aonde o outro não está. Ao aceitar lutar com seus companheiros, Filoctetes abre caminho para reconquistar um orgulho cívico baseado na cidade – mas precisa, antes, abandonar o seu orgulho pessoal, seu ressentimento contra Ulisses, que o impede justamente de voltar à cidade.
Essa limitação do pessoal, do “auto-erótico”, em proveito de uma função socialmente integrada, seria uma das formas de operar a passagem do selvagem ao civilizado. A questão, veja-se, não é tanto erradicar o orgulho – pois ele continua a existir – mas transformá-lo, enraizá-lo num vínculo social que o torne integrado à vida da cidade. Após a vitória na batalha, Filoctetes segue orgulhoso de si mesmo, mas agora esse orgulho enlaça e se apóia no olhar dos outros sobre si. Assim como não é possível dizer “quem se é” no mundo selvagem, também a figura do “outro” não tem sentido nenhum fora do mundo civilizado. E é abrindo espaço para um e outro que se opera a passagem entre ambos os extremos.
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Podemos entretanto nos perguntar: porquê Filoctetes abandona sua fruição autoerótica (ou narcísica)? A peça avança algumas sugestões. Primeiro, há o encanto com a beleza do jovem Neoptólemo. Há também a percepção das riquezas que só a vida civilizada permite – a linguagem e tudo o que ela oferece, o reconhecimento de si pelo grupo, o reconhecimento do outro como parte de meu grupo, etc. Há também as mazelas da vida selvagem em si mesma, pois a peça sugere que viver privado de civilização, embora tenha seus ganhos autoeróticos – poder odiar Ulisses o quanto se quiser, por exemplo – não é exatamente um paraíso. Há por fim a questão do reconhecimento e da glória. Mas o principal parece ser essa capacidade de viver ambos os lados – o civilizado E o selvagem – dentro da vida da cultura. Na vida selvagem o civilizado não encontra espaço; mas o selvagem pode encontrar espaço na cultura.
De maneira geral, a peça parece contrastar a todo momento esses dois sentidos, exemplificados através de uma mesma ação. Filoctetes vive, por exemplo, numa selva, aonde todo dia é uma batalha; ele caça, se expõe a perigos, vive os rigores de uma luta constante. As mesmas coisas, exatamente as mesmas, também ocorrem na batalha que os gregos o convidam a lutar junto deles. Só que nesse caso, esses atos adquirem outro sentido; podem sustentar o reconhecimento dos pares, que os valorizarão como proveitosos à cultura.
Dito de outra forma, mesmo a selvageria de Filoctetes adquire um lugar na vida civilizada quando essa selvageria ocorre dentro dos marcos compartilhados. Se nos detivermos um instante nessa perspectiva, é maravilhoso pensar em tudo aquilo que o grego antigo transformava em cultura, “domesticando-o”. Já vimos que isso ocorre com a selvageria, o ódio, o orgulho, a própria vontade de matar (que na guerra serve à pólis)… Até mesmo a morte é transformada pela vida grega na cultura: pois ao inscrever o seu nome e a história de seus feitos na cultura, nas lendas dos heróis, um herói se imortabilizava: doravante, ele será sempre lembrado, e terá sempre um lugar na vida da cultura. O contraste com a vida selvagem de Filoctetes é imenso, pois na selva, mesmo o maior ato de heroísmo se perde num puro vazio –
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Parece-nos que essa vontade de glória, essa busca de imortalidade, faz pender a balança para o lado civilizado, e faz o herói por fim aceitar retornar à pólis e lutar com os seus. Nisso, seu narcisismo, sua vontade de auto-afirmação, encontra um lugar e uma forma sublime que não contraria a pólis, mas, ao contrário, nela se sustenta.
Como vimos no caso do orgulho, não se trata exatamente de abandonar a selvageria, mas de reconhecer seu espaço num campo compartilhado. Aliás, em tudo não se trata de abandono, mas de tradução, de produção, de percepção de que existe um espaço possível para o animal no homem dentro da cultura – e, talvez, a sugestão de que a cultura é essencialmente isso, essa capacidade de sustentar o mais selvagem no homem dentro dos marcos de uma relação social que torne mesmo essa selvageria possível – e útil – aos companheiros.
Podemos nos perguntar, pra encerrar, aonde está, em nossa cultura atual, esse espaço para o animal no homem. Quer nos parecer que há toda uma promessa – da ciência, da medicina, da indústria farmacêutica, etc – de que o animal no homem… silenciou. Que ele foi – ou pode ser -, de alguma forma, erradicado. Mesmo a loucura, até a poucos anos um dos lugares ainda disponíveis para se viver o “selvagem”, parece agora ter cada vez menos importância, legitimidade, sustentação, no social. A loucura como loucura, isto é, loucura como mistério, como lugar de um não-saber, lugar de exclusão da racionalidade tanto por parecer menos que ela quanto por parecer mais – aquilo que o louco saberia, que pertenceria a todos nós, aonde nós nos reconheceríamos, quase não existe mais… Quão diferentes somos, nesse sentido, se comparados ao grego trágico, que buscava, com a cultura, encontrar lugar para a loucura, e não excluí-la.
Por fim, a revolta atual contra todo tipo de limite, de autoridade, poderia ser incluída no mesmo debate. Como vimos, passar do selvagem ao civilizado implica aceitar um limite, relacionado ao outro – “nunca abandonar o companheiro de batalha”. Hoje, ao mesmo tempo que esvaziamos o lugar do selvagem na vida ‘civilizada’, excluímos dessa mesma vida aquilo que poderia constituir esse espaço de convivência, de respeito ao outro – os limites, a autoridade, compartilhados. Nesse sentido, somos todos selvagens – abandonados, cada um, na sua ilha, incapazes de reatar relações com o ‘outro’, esse Ulisses que nos parece sempre intragável – e parece não haver naus, jovens ou glórias buscando nos resgatar no horizonte –
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Notas
[1] “Mito e tragédia na Grécia Antiga”, pg 140, livro escrito com Jean-Pierre Vernant. O artigo em questão é “O Filoctetes de Sófocles e a Efebia”. São Paulo: Perspectiva, 1999.
[2] Fonte: https://www.trajanovieira.com/filoctetes-de-sofocles/
[3] Cf. Trajano Vieira, citado no site acima.
[4] Creio que a peça opõe então uma memória ou temporalidade natural e ‘selvagem’, que se esgota com a vida do homem e não apresenta qualquer perspectiva quanto ao futuro, à memória cultural que pode fazer perdurar essa vida na história. Ser reconhecido pelos pares era, então, um meio de fazer perpetuar a sua história na vida da cidade. Detalhe que esses homens vivem até hoje na medida em que nos ocupamos de suas histórias.