Inteligência artificial, sujeito, emoção e psicanálise

airobo

 

Um rápido artigo destinado a resumir a situação atual da Inteligência Artificial (IA), publicado no site XATAKA (aqui, o link da publicação), fez-me pensar nos limites atuais da IA, e em como nosso arsenal psicanalítico poderia ajudar a pensar esses limites, na medida de nosso conhecimento do que seria a inteligência.

 

Mas primeiro, um pouco de história. Em termos bem gerais, a concepção atual de inteligência (ainda) é herdeira de uma concepção religiosa da mente, a qual buscava separar o ‘emocional’ do ‘racional’. Essa tentativa, já o sabemos, não vingou (em termos absolutos), embora tenha sem dúvida nos ajudado a avançar na direção de uma imagem mais objetiva do mental.

 

Em resumo, e sempre em termos gerais, é como se tivéssemos oscilado entre esses dois extremos: de um momento subjetivista demais, aonde o religioso ainda era o contexto predominante, passamos a um momento racionalista demais, com o atual paradigma científico, perdendo, em cada polo, algo importante vinculado ao lado oposto.

 

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Toda essa história me veio à mente quando li o referido artigo, porque, como pretendo explicar na sequência, pareceu-me que a história da Inteligência Artificial repete mais ou menos algo desse passado. Mais especificamente, pareceu-me que a supervalorização do polo racionalista de nossa história da “mente” está se repetindo agora, barrando, hoje como ontem, o avanço desses esforços.

 

Senão vejamos: como nos é contado no artigo, a IA se inicia com certo otimismo ingênuo, no qual imaginava-se que logo seria possível replicar em computadores a inteligência humana. Esse otimismo, como se conclui do artigo, era baseado na premissa de que a inteligência humana era apenas uma capacidade de resolver problemas. Isto é, em nossos termos, trabalhava-se com uma noção de inteligência puramente racional.

 

Quando falo em ‘racional’ na frase acima quero me referir a uma capacidade de encontrar soluções de problemas de forma lógica, matemática, coerente, e sobretudo a partir de premissas muito bem delimitadas. O problema é que, na vida prática, as coisas não são assim; pelo contrário, muito de nossa “inteligência” está justamente na capacidade de lidar com variáveis abertas, com problemas não definidos – e em extrair dessa massa de dados alguma relação constante, algum questionamento definido.

 

Em termos de IA, o primeiro tipo de inteligência ficou conhecido como Inteligência Artificial FRACA, porque, justamente, boa parte do trabalho ‘inteligente’ tem que ser feito antes, previamente, na própria definição do(s) problema(s) que a máquina irá enfrentar. A maioria da IA que temos hoje é desse tipo. Um exemplo famoso é a máquina que foi programada pelo Google para jogar “GO”, vencendo o campeão mundial da modalidade (link). Embora a máquina seja “inteligente” quando se trata do jogo, ela não saberia resolver o problema mais simples se ele não estivesse já previamente armazenado em seu código. Numa palavra, a aplicação da inteligência é mecânica, ela não se desenvolve, não evolui, não cria nada.

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Já a Inteligência Artificial FORTE, que ainda buscamos, se caracterizaria pela capacidade de criar, ou melhor, de adaptar os dados de um problema de forma a criar, primeiro, uma questão específica não previamente programada, inventando, depois, a solução desse problema novo. A mudança de paradigma é dada na própria definição do que seria inteligência, já que agora ela é entendida como uma a atividade mental que serve para adaptar ou conformar entornos relevantes para nossa vida pessoal (grifos meus; a definição é de Robert Sternberg, psicólogo da Universidade de Yale).

 

Percebam que para a realização dessa IA forte, temos que, primeiro, ter uma relação com o ambiente, com o entorno aonde está inserida essa IA; segundo, ela tem que ter a capacidade de extrair desse entorno dados relevantes para sua ‘vida pessoal‘, para sua orientação programada, digamos assim. Ora, são exatamente os dois polos da relação que, para Winnicott, define nossa subjetividade humana. O que equivale a dizer que… estamos agora no polo emocional da questão!

 

Tanto é assim que, para o neurocientista Antônio Damásio, o papel das emoções é justamente traçar esse ‘mapa’ da relação que o organismo estabelece com o seu meio. Essa seria, aliás, a própria definição de uma emoção: ela mapeia a relação entre o meio e o organismo, ao mesmo tempo que predispõe esse organismo para uma reação apropriada, a partir da leitura que a emoção faz da situação (aqui, um post sobre um dos livros do autor).

 

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Não sei se fica claro, mas creio que nesse encaminhamento do problema da IA há dois axiomas muito centrais para a história da psicologia, em especial para a psicanálise winnicottiana. Afinal, o que se está dizendo, na própria definição de inteligência utilizada, é que a IA só será realmente ‘inteligente’ se for capaz de emular TANTO uma noção de “Eu” (pessoalidade, individualidade) QUANTO de “ambiente”. Mais especificamente ainda, essa maneira de encarar o problema da inteligência supõe um vínculo fundamental entre a individualidade de um organismo (ou sistema) e o ambiente no qual ele está inserido.

 

Equivale a dizer que o componente criativo ou adaptativo da inteligência está diretamente vinculado à pessoalidade do organismo (ou máquina), o que implicaria que, mesmo para uma inteligência artificial, ainda vigoraria o perspectivismo nietzscheano.

 

Ou seja, também para as máquinas, a ‘realidade’ seria uma função do interesse depositado nela. Uma realidade desinteressada seria isenta de sentido tanto para uma máquina quanto para nós. O sentido seria uma função da perspectiva vital envolvida, do interesse, da relação entre o organismo e o meio. O sentido seria expressão justamente do encontro de um vínculo entre o organismo e seu entorno.

 

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Inversamente, o debate sobre os avanços da IA nos faz pensar sobre como a inteligência funciona nos organismos vivos; porque é perfeitamente claro que a inteligência varia de organismo para organismo, na exata proporção em que esse recorta um aspecto ou outro da realidade, e trabalha com ele.

 

Os cães, por exemplo, veem – e pensam, processam – o mundo de maneira diferente da nossa, porque, entre outras coisas, seu recorte social não é tão importante quanto o nosso. Por outro lado existe toda uma importância do olfato para eles que, para nós, já não faz sentido.

 

O que nos leva a pensar que a realidade, assim considerada, seria a soma de todos os aspectos importantes para cada espécie de vida – ou de máquina, se elas conseguirem emular o interesse que a realidade tem para nós. Uma espécie de real multi-camadas, onde cada organismo se liga a alguns aspectos do todo, apenas, deixando outros de lado.

 

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Não temos, por exemplo, órgãos destinados a avaliar a qualidade do ar ou a quantidade de oxigênio disponível, porque essas variáveis sempre foram razoavelmente constantes em nosso mundo. Deixarão de sê-lo logo mais, se o homem realmente sair a colonizar outros planetas.

 

Isso nos ajuda a perceber, entretanto, como a vida, ao criar organismos, atuou exatamente da forma como hoje definimos a inteligência: isto é, de forma criativa, a partir de um vínculo muito estreito entre organismo e ambiente. É quase como se a inteligência repetisse a vida – ou foi a vida quem repetiu a inteligência?

 

De qualquer forma, se conseguirmos criar algo como a Inteligência Artificial Forte, estaremos recriando, de certa forma, o próprio impulso criador vital, indo ainda mais longe na tentativa humana de tornar-se “deus” –

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2 Respostas para “Inteligência artificial, sujeito, emoção e psicanálise

  1. excelentíssimo texto!! Nao conhecia o blog, mas o visitarei sempre a partir de agora. Muito obrigada pelo compartilhamento!

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