Há muita confusão sobre o que acontece dentro de uma clínica de psicanálise. E não faltam motivos, desde profissionais ruins – como em qualquer profissão – até as diferenças próprias de cada escola, sem contar a visão dos críticos que, via de regra, tende a ser a pior possível.
Por isso gosto tanto e valorizo as vinhetas clínicas que ANTONINO FERRO costuma espalhar em seus livros. Conceitos, temos aos montes, mas exemplos práticos, histórias clínicas bem contadas, são raras.
Assim, resolvi começar uma sequência de postagens aqui no blog – que talvez vire um quadro – sobre vinhetas clínicas, cenas de acontecimentos da clínica que permitam entender o que se passa, afinal, na cabeça de um analista.
Escolhi Antonino Ferro porque minha maneira de atender se aproxima da dele – ou, ao menos, é isso que eu tento fazer… Segue a vinheta, retirada do livro “A Técnica na Psicanálise Infantil”, da editora Imago, publicado em 1995 (páginas 47 e seguintes):
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“Uma menina, filha de pais que desde logo me parecem “frágeis”, apresenta um estranho sintoma, causa de muitas consultas e investigações diagnósticas que porém não levaram à nada. Francesca, que tem 10 anos, durante várias horas ao dia grita desesperadamente, sem interrupção; isto lhe acontece somente quando está em casa (…).
No seu primeiro encontro comigo, Francesca faz um desenho (fig. 3).
Fico incerto diante de tantos possíveis significados do bosque onde não há pessoas (como o define a menina) (…). Penso em possíveis interpretações, mas me pergunto que uso Francesca poderia fazer delas, e nenhuma me parece satisfatória.
Enquanto isso, sinto crescer dentro de mim um progressivo mal-estar por não saber encontrar palavras adequadas, e sinto o impulso de sair do impasse dizendo alguma coisa, qualquer coisa.
Francesca parece vir ao meu socorro fazendo um segundo desenho (fig. 4), que mostra uma menina de perfil, sem espessura, vestida de rendas e crochês, muito formal e comportada.
Mas também – ou talvez, por isso mesmo – diante desse desenho, não sei decidir-me a intervir. Vêm à minha mente pensamentos sobre a bidimensionalidade do desenho, sobre a falta de profundidade. Fico tentado a dizer alguma coisa, utilizando também as minhas vivências de angústia, desencorajamento, paralisias que certamente – penso – têm a ver justamente com Francesca, com (…) seu funcionamento mental. Mas o quê dizer-lhe e como dizê-lo, de modo que possa lhe ser útil? (…)
Francesca, num momento, justapõe o segundo desenho ao primeiro: a “menina bidimensional” ao “bosque sem pessoas”. Nesse ponto, tenho uma espécie de iluminação e pergunto à Francesca, animando-me: “Me diga, o que faz uma menina sozinha num bosque sem pessoas?”. “GRITA!”, é a clara resposta de Francesca, que logo começa a desenhar uma outra menina (fig. 5), desta vez vista de frente, como efeito tridimensional e com um olhar intenso.
O desenho fica incompleto porque termina a sessão, mas também porque será necessário ainda um longo trabalho antes que as angústias de Francesca possam encontrar a sua completa expressão (…).”
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Creio que fica claro como, na experiência do atendimento, a sensação de ‘estar perdido’ do analista, sua dificuldade em encontrar o que dizer, tem a ver justamente com a problemática da menina, que podemos entender como essa mesma dificuldade de ‘encontrar o que dizer’, isto é, traduzir em signos compartilháveis a vivência de estar cercada de emoções intraduzíveis (os animais da floresta).
O analista, ajudado pela paciente, consegue criar uma ‘gestalt’, chegar a uma construção de sentido, que organiza os fatos da sessão. Essa construção do analista não precisa ser verdadeira, não precisa descrever o que acontece de fato com a paciente, mas sim ajuda-la a transformar a maneira com que ela se relaciona com seus problemas.
Na teoria de Bion, que é onde Antonino se apóia, essa transformação se dá a partir de uma construção narrativa a quatro mãos, envolvendo trânsito emocional. Já falamos várias vezes sobre isso aqui no blog, por isso remeto o leitor aos post anteriores sobre Bion (por exemplo, aqui, aqui, aqui e aqui).
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Quero aproveitar para ressaltar como Antonino usa as suas interpretações NÃO PARA ‘JOGAR’ UMA VERDADE INCONSCIENTE NO COLO DA PACIENTE, MAS PARA AJUSTAR O SEU POSICIONAMENTO (De Antonino) frente a ela.
Assim, tendo sentido que os pais da moça eram ‘frágeis’, Antonino entende que não deve sobrecarregar a paciente com nenhuma interpretação mais pesada, porque sua própria subjetividade era frágil, sua capacidade de lidar com as emoções era frágil.
E quanto ele descobre um possível sentido para o sintoma – a menina grita como a única forma que encontrou para lidar com a vivência ainda muito selvagem, muito crua, de suas emoções – , ele NÃO SAI DIZENDO ISSO A TORTO E A DIREITO, como se isso fosse resolver, magicamente, a situação. Ele guarda esse sentido para si, organiza o quadro que a paciente trás com ele, e procura SE adaptar à demanda emocional da paciente.
Ou, como ele coloca muito elegantemente, trata-se, no fundo, de construir, junto com Francesca, uma “boca”, uma capacidade elaborativa que permita transformar as emoções brutas da “selva sem pessoas” em narrativas, em histórias, que contenham, numa forma mais madura, essas mesmas emoções.
(trabalhei questões semelhantes nos textos sobre Folictetes, uma tragédia grega muito interessante)
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Outra coisa que quero deixar clara é que NÃO estou dizendo que toda vez que um paciente desenhar uma selva quer dizer que ela se sente perdido frente às suas emoções, nem que TODA menina desenhada de perfil quer dizer pouca espessura emocional, ou que TODA menina sem boca implica numa dificuldade de elaboração simbólica. Não!
Cada sessão, cada acontecimento da sessão, precisa ser levado em conta NO CONTEXTO INTEIRO DAQUILO QUE CONHECEMOS, bem como daquilo que ainda não sabemos. Notem a relutância de Antonino em dizer alguma coisa, sem antes ter claro O USO que a paciente poderia fazer daquilo. Na sessão, qualquer coisa pode significar qualquer coisa.
Assim, o analista faz propostas de construção de sentido muito cuidadosas, erigidas CASO À CASO, como peças únicas, exclusivas para cada situação… não se trata de uma “produção em série” de sentidos que servem pra tudo, como uma roupa só, que devesse caber em todas as pessoas… as interpretações são feitas ‘sob medida’ para cada situação, utilizando os acontecimentos da própria sessão (incluídos aí os sentimentos do analista, como mostra a vinheta). E importa mais a capacidade dessa construção de sentido produzir mudança no paciente do que sua suposta ‘veracidade’.
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Quero repetir isso mais uma vez: NÃO SE TRATA, APENAS (ao menos em Bion e Winnicott), de descobrir a verdade emocional do paciente, mas sim de AJUDÁ-LO A MUDAR DE POSIÇÃO SUBJETIVA, ao auxiliá-lo em seu desenvolvimento emocional (= sua capacidade de elaborar emoções); ajudá-lo a SUPORTAR essa verdade emocional que pode ter surgido na primeira sessão, mas precisará de muitas mais para ser ainda DIGERIDA, ELABORADA, INTEGRADA.
Enquanto essa capacidade de elaboração não está bem estabelecida, as interpretações (ou a verdade emocional do paciente) servem muito mais para reposicionar o analista frente ao paciente, do que para alterar algo NO paciente. Esse uso existe também, mas ele só terá efeito quando o paciente JÁ TEM condições de ‘digerir’, de elaborar, o sentido dessa interpretação; mas, com isso, já estamos nos encaminhando para o fim de uma análise.
Antonino conclui (idem, pg 50): “No ‘bosque sem pessoas’ da turbulência emocional aconteceu um encontro, e não estamos mais sós. As emoções dispersas e sem nome, que podiam somente ser gritadas para fora, estão agora incluídas num espaço compartilhado e transformadas numa experiência que se pode começar a contar: uma micro-história toma corpo no aqui-e-agora da sessão e permitirá, através da integração das micro-histórias das sessões seguintes, construir uma ‘história’ compartilhada”