
Pequena série onde quero tentar expor como o conceito de inconsciente foi se transformando depois de Freud. Para isso, no entanto, é importante começarmos pelo inconsciente em Freud.
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Em 1923, num trabalho importante, Freud tenta resumir o progresso teórico relacionado ao inconsciente, bem como dar alguns passos além. Assim ele nos conta como chegou ao conceito:
“(…) mas nós chegamos ao termo ou conceito de inconsciente ao longo de outro caminho; pela consideração de certas experiências em que a dinâmica mental desempenha um papel. Descobrimos – isto é, fomos obrigados a presumir – que existem ideias ou processos mentais muito poderosos que podem produzir na vida mental todos os efeitos que as ideias comuns produzem (…) embora eles próprios não se tornem conscientes. (…) O fato de ser encontrado na técnica da psicanálise um meio pelo qual a força opositora pode ser removida e as ideias inconscientes tornadas conscientes torna irrefutável essa teoria. (…) O estado em que as ideias existiam antes de se tornarem conscientes é chamado por nós de repressão e asseveramos que a força que instituiu a repreensão e a mantém é percebida como resistência durante o trabalho de análise. Obtemos assim o nosso conceito de inconsciente a partir da teoria da repreensão. O reprimido é para nós o protótipo do inconsciente“. (Freud, “O ego e o id”, página 28, grifos meus)
Até aqui, a ideia parece simples: a repressão instaura um ‘inconsciente’; inconsciente e repressão parecem vinculados, quase sinônimos. Entretanto, uma questão fundamental já se desenha no ar; peço que o leitor mantenha essa questão em mente, até o final dessa pequena série. A questão seria: como é possível que o analista, um objeto externo, atue no inconsciente, modificando sua expressão sobre os conteúdos psíquicos?
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Avançando um pouco mais no mesmo texto, veremos que Freud, à certa altura de sua teorização, diferencia o inconsciente do reprimido, e mais: chama a atenção para a importância do Ego, no processo mesmo de conhecer sobre o inconsciente. Ele diz:
“reconhecemos que o inconsciente não coincide com o reprimido; é ainda verdade que tudo o que é reprimido é Ics., mas nem tudo o que é Ics. é reprimido. Também uma parte do ego […] pode ser inconsciente“. ( Freud, “O ego e o id”, página 31. Grifos meus)
Para finalizar, quero apena enfatizar como o próprio Freud percebe que a repressão foi um pouco supervalorizada, no início da psicanálise:
” A pesquisa patológica dirigiu nosso interesse de modo excessivamente exclusivo para o reprimido. Gostaríamos de aprender mais sobre o ego (…)”. ( Freud, “O ego e o id”, página 33)
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Assim, nessa breve introdução, temos alguns elementos essenciais da noção de inconsciente em Freud. Nas minhas palavras, quer realçar, primeiro, que a noção de inconsciente freudiana é uma noção dinâmica, isto é, relativa ao modo como os conteúdos mentais se relacionam entre si.
Quero repetir isso, porque há muita confusão sobre esse ponto ainda hoje em dia: inconsciente NÃO É uma “coisa”; NÃO É um lugar; NÃO É uma parte do cérebro; mas sim um modo de funcionamento, um modo particular de RELAÇÃO ENTRE CONTEÚDOS PSÍQUICOS.
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Em segundo lugar, chamo a atenção para algo que está em Freud, mas nem sempre é lembrado pelos psicanalistas: a importância do ego ao se considerar o inconsciente. Na sua fase final de teorização, Freud mesmo gostaria de “aprender mais sobre o ego”, conforme citado acima.
Não me parece fazer sentido, portanto, a crítica – que foi feita – a alguns psicanalistas que se dedicaram justamente a ‘aprender mais sobre o ego’. Mas teremos oportunidade de voltar a isso.
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Finalmente, há no próprio texto freudiano um paralelismo entre um funcionamento psíquico – um inconsciente, um modo particular de relação entre conteúdos psíquicos – e uma relação muito específica, ocorrendo entre um paciente e seu terapeuta.
O terapeuta é capaz de atuar EM CONTINUIDADE com o inconsciente. Isto é, o terapeuta, um objeto externo, é capaz de suprimir parte da resistência, atuando como se fosse parte dessa cadeia, desse modo específico de funcionamento do sistema mental.
Dito de outro modo ainda: o terapeuta atua como se fosse parte do inconsciente? Ou, o que vem a dar quase na mesma: que parece haver um vínculo entre o “inconsciente”, esse modo de relação entre conteúdos psíquicos, e o modo de relação estabelecido com o terapeuta (ou, mais genericamente, com o ‘outro’) .
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Na minha leitura de Freud, o analista é capaz de modificar o inconsciente do paciente por estar investido na transferência, isto é, por ocupar o mesmo lugar que figuras importantes da história do paciente ocuparam. Através da técnica e da sensibilidade analíticas, o terapeuta seria levado a perceber esse lugar e a se confundir com ele. E esse lugar, o lugar de um objeto de amor, é que dá ao analista o ‘poder’ de agir como se fosse parte da ação do inconsciente sobre o psiquismo do paciente.
Mas continuaremos esse assunto em outro post.
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