
Para Winnicott, haveria um movimento natural no ser humano de criação do mundo. Toda experiência vivida pelo bebê – a percepção do frio, a sensação de ter fome ou estar saciado, o sorriso de um adulto, barulhos – seria reimaginada, traduzida em imagem. Só então, só depois dessa transcrição, é que as experiências do corpo estariam disponíveis para a mente.
Na verdade, mais do que apenas disponíveis: a mente seria justamente formada por esse movimento criativo, por esse elaborar imaginativamente as experiências do corpo.
A mente, a subjetividade, seria, então, um duplo, uma cópia ou transcrição daquilo que é percebido, ou, mais precisamente: daquilo que é experienciado. Nossa mente seria o resultado da recriação elaborativa de nossas experiências.
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É o mesmo que dizer que alucinamos o real. Isso é, recriamos aquilo que vivemos; traduzimos, em termos da nossa experiência pessoal, subjetiva, algo que pode ter sido objetivo ao nível do corpo. De certa forma, submetemos o real aos nossos critérios; subjetivamos a realidade.
Não por outro motivo, o sonho é o paradigma desse ‘alucinar’. Tanto Winnicott quanto Bion entenderão que o trabalho que o sonho realiza é menos um trabalho de ‘cifração’ ou recalque do que um trabalho de narração, de digestão, de ‘transformação em subjetivo’ – exatamente essa elaboração imaginativa que viemos falando.
(Tales Ab’Saber escreveu um livro belíssimo sobre esse tema, cuja primeira parte tem resumo publicado aqui no blog. Vale a pena dar uma conferida – link )
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Ocorre que não nos basta sonhar. Como acabamos compreendendo (com sofrimento), existem realidades que não se dobram ao nosso sonho. Ao contrário, nós é que devemos seguir-lhes. Via de regra, nós é que nos adaptamos ao real.
Só que, como bem descreve Winnicott, no começo da vida, as coisas seriam mais misturadas. A criança não está em condições de agir, nem de se adaptar. Ela exige, antes, a adaptação de outras pessoas à ela, à suas necessidades.
Do ponto de vista da criança, então, sonho e realidade não se distinguem tão bem. Ela pode sonhar que está sendo alimentada, sem ver que na realidade, sua mãe a está mesmo alimentando. Em sua experiência, portanto, sonho – aquilo que adapta o real à nossa subjetividade – e realidade – aquilo que demanda que nós nos adaptemos ao real – se misturam.
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E isso seria fundamental. Na fase que Winnicott chamou de “ilusão de onipotência”, aconteceria exatamente essa mistura entre real e sonho: a adaptação ativa do ambiente às necessidades da criança faria com que essa experimentasse o amadurecimento como envolvendo uma continuidade entre sonho e realidade.
Essa continuidade, notemos, se alicerça na qualidade do cuidado ambiental disponível. A confusão ou mistura entre sonho e realidade só é possível ali onde as necessidades da criança são atendidas de forma satisfatória.
Uma criança que sente fome poderá sonhar que é alimentada. Se ela o for realmente, poderá então continuar sonhando. Poderíamos dizer, poderá continuar ‘dormindo’, isto é, não tão atenta ao real
Se, entretanto, continuar a sentir fome, o sonho deverá ceder lugar à outra atitude. Ela precisará ‘acordar’, isto é, prestar atenção à realidade, deixando em suspenso esse trabalho de subjetivação do real, que aproximamos ao sonho.
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Talvez não fique claro de imediato, mas o que Winnicott está nos dizendo com tudo isso é que só encontramos sentido na realidade quando a criamos. Ou seja, esse trabalho de subjetivação do vivido, esse ‘sonhar’ ou alucinar o real, é o fundamento para que possamos experienciar a realidade como algo ‘nosso’, que nos diga respeito.
Obviamente, crescer é, em parte, aprender a lidar cada vez mais com esse real, sonhando-o ali onde ele está. Quer dizer: continuamos sonhando quando adultos; apenas temos o cuidado de sonhar (ou alucinar) aquilo que sabemos que existe… até para que a realidade não nos ‘desperte’ de nosso sonho… nos impedindo de subjetivá-la.
Conforme apontado acima, esse sonhar só pode se manter na medida em que algum suporte real exista. De nada adianta eu sonhar / alucinar que tenho ótimos amigos, se nada na realidade dá suporte à esse sonho.
Sonho e realidade seriam dois âmbitos da experiência que permaneceriam unidos , vida afora, pelo suporte do outro.
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Este seria o problema, na psicose. Nas primitivas etapas do amadurecimento pessoal, onde sonho e realidade deveriam andar juntos, algo faltou no cuidado ambiental, obrigando a criança a ‘acordar’ cedo demais. [1]
O trabalho do sonho teve que ser interrompido; a realidade não pode mais ser subjetivada, transformada em algo ‘meu’, e em seu lugar surgiu a defesa – defesa contra uma realidade que não pode mais ter sentido pessoal por falta de sonho.
A psicose seria, então, uma defesa contra a realidade, ou, antes, a expressão da impossibilidade de convivência – sustentada pelo ambiente – entre sonho e real. A impossibilidade de subjetivação do real, que passa a ser negado em favor de um sonho tornado absoluto.
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Paradoxalmente, a psicose, que em geral aproximamos de uma perda da realidade, se caracterizaria, antes, por um excesso de real – ou por uma falta de sonho[2].
Assim, o trabalho terapêutico nas psicoses seria baseado, ao menos segundo Winnicott, na recriação de um ambiente que possa dar suporte àquela continuidade entre sonho e experiência – propiciando a realização de um sonho em sessão, ou oferecendo um sonho (uma narrativa, uma história) para subjetivar um pedaço do real do paciente.
A teoria winnicottiana, assim, mais uma vez, se caracterizaria por ressaltar a posição do ‘entre’. A subjetividade humana, a criatividade que a caracterizaria, somente seria possível ali onde um trânsito foi estabelecido – e sustentado – entre subjetividade e objetividade.
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Notas
[1] Não se trata de um acontecimento apenas, é claro, mas de um estilo falho; de uma constante ausência de cuidados.
[2] Sonho entendido enquanto essa tradução do real em subjetividade
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