Damásio, psicanálise e autismo

Damásio é um neurocientista português que se tornou conhecido no mundo inteiro por seu trabalho com as emoções. Suas pesquisas suportam a ideia de que as emoções são preparações do corpo para uma ação, ou, como dizia Bergon, num sentido muito próximo, as emoções seriam ações do corpo sobre o corpo mesmo.

Em seu estudo sobre as emoções, Damásio acabou percebendo que o corpo humano é uma máquina de agir; cada objeto do ambiente onde estamos “prepara” o corpo para uma espécie de interação com ele. Assim, um carro vindo em nossa direção à alta velocidade imprimirá ao corpo uma série de reações destinadas a lidar com essa situação. A maior parte desse processo, no entanto, não será consciente. O corpo agirá “sozinho”, por assim dizer, baseado em suas próprias estruturas.

Cada objeto demanda do corpo uma postura; e o mesmo vale para nossas memórias. Elas evocam as posturas ativas ou reativas específicas que o objeto em questão evocou numa situação real. Assim, “lembrar” equivale literalmente a “reviver” uma cena. Enquanto lembramos, repetimos, no teatro do corpo, uma série de eventos e posturas corporais relacionada à essa “dança” com os objetos.

Para dizer tudo: os objetos alteram nossa condição corporal, em função da preparação automática a que o corpo é levado pela sua simples presença (ou rememoração).

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Essa alteração corporal, segundo Damásio, é percebida pelos mecanismos responsáveis por mapear o estado do corpo, momento a momento. O estado corporal não pode vaguear a esmo; ele tem limites estreitos de funcionamento, e há toda uma maquinaria interna destinada a controlar o seu estado, mantê-lo dentro desses limites.

São os mecanismos relacionados à homeostase. Tanto essa percepção do seu próprio estado, quanto as ações do corpo sobre ele mesmo – e nisso incluem-se os hormônios, mas também as emoções – são, mais uma vez, inconscientes. Não precisam passar pela consciência para nada.

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A partir da ideia de que o corpo efetua um “mapa” sobre seu estado, momento a momento, Damásio aventa a possibilidade de que esses mapas poderiam ser a base para a construção daquilo que chamamos de “Eu” ou “self”, isto é, os mapas do estado do corpo seriam o cerne do nosso sentimento de “Eu”.

Haveria, assim, um “Self central”, formado dessa sequência de mapas do estado corporal. Esse self, como essa varredura corporal, seria formado momento a momento, sem criar memória. Sua finalidade seria a de proporcionar uma simples referência instantânea para o ‘ser’ do sujeito.

Mas haveria também um “self autobiográfico”, onde as memórias, a história de vida, se misturariam à uma referência de si mais refletida, dando origem à algo mais próximo daquilo que se entende em psicologia como “self” ou como o “Eu” do sujeito.

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As hipóteses de Damásio encontram várias similitudes na psicanálise. A ideia de que o Ego é , antes de mais nada, um Ego corporal, já está em Freud. Winnicott define a psique como o resultado da elaboração imaginativa das experiências do corpo, e assim, também, parece se aproximar do que propõe Damásio.

No entanto, Winnicott, como clínico que foi, deu atenção não apenas à integração entre o corpo e a psique – que parece ser a regra na saúde -, mas também aos problemas ligados à essa integração.

Para esse autor, o autismo seria um dos desfechos possíveis quando a integração corpo / psique não se realiza a contento.

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Winnicott argumenta que, para o bebê recém nascido, as sensações provenientes de seu corpo são tão “externas” quanto um trovão ou o latido de um cão. Elas não são sentidas como “próprias”. Elas não nascem casadas com o “eu”. Pelo contrário, é preciso percorrer um longo caminho no desenvolvimento emocional para que as experiências do corpo comecem a ser sentidas como algo “meu”, algo que me pertence, que acontece “comigo”.

Poderíamos pensar o autismo nessa linha, como um efeito do descasamento entre algo do corpo e a mente. De fato, em muitos desses sujeitos, o corpo é vivido como algo estranho, como algo “não-eu”, como algo incômodo. No dizer de uma paciente minha, sentir as sensações de seu corpo parecia quebrar uma certa ordem interior dela; era como uma invasão. Podendo escolher, ela preferiria não sentir.

E no entanto, ela tem um comportamento funcionante, do ponto de vista de seu corpo (descontadas as dificuldades comuns ao autismo, como problemas com motricidade fina, que talvez dependam justamente do suporte mental ao corpo).

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Retomando as ideias de Damásio, é como se seu “self central” estivesse intacto, e funcionando. Haveria então um problema no “self autobiográfico”? Isto é, algo na integração entre o self central e a história de vida não ocorreu?

Difícil ser taxativo quanto a isso. Uma impressão recorrente, no entanto, é a de que muitos autistas vivem baseados em outros parâmetros, em relação aos neurotípicos. Estes parecem dar mais espaço ao corpo e ao inconsciente em suas decisões. Aqueles, talvez não possam recorrer tão amiúde às sensações do próprio corpo, e com isso precisam se orientar pela consciência, pelas ideias, pelas palavras.

Imagine que você não tivesse nunca a sensação de fome. Como saberia quando comer? Talvez você imitasse as outras pessoas; talvez estipulasse horários rígidos, desvinculados de sua real necessidade no momento. Talvez deixasse pra comer só quando estivesse a ponto de desmaiar de fraqueza.

Parece um pouco drástico, mas creio que é assim que muitos autistas vivem. Impossibilitados de recorrer às sensações do próprio corpo (por motivos à determinar), nos mais variados graus, acabam se sentindo na obrigação de criar substitutos. Imitação, regras rígidas e desconectadas, falta de cuidado consigo, são posturas comuns em muitos autistas.

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Se pudéssemos levar mais longe a ideia de que o autismo é o resultado de uma não-integração muito precoce entre a psique e o corpo, poderíamos sugerir que toda a dificuldade de socialização que caracteriza esse quadro se daria também por falta de apoio no corpo.

Ou seja, as emoções derivadas de situações sociais, enquanto emoções, contribuem para formar o “mapa” do nosso corpo e self central, segundo Damásio. Ora, ao estarem privados desse contato com o próprio corpo, os autistas não conseguiriam ter o mesmo tipo de interação nem a mesma valorização do social que os neurotípicos.

O self neurotípico está preso ao próprio corpo; e, por essa via, também ao social. Essa prisão é vivida como segurança, como pertencimento, como a sensação de ter um referencial: “sim, eu sou assim e assado, eu acho isso e aquilo”. O self autista não vive esse aprisionamento, mas, em contrapartida, se encontra de algum modo à deriva, sem referências para além dos modelos e das poucas sensações que puder integrar.

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