
Jung tem uma frase que considero certeira. Diz ele: “Quem olha pra fora, sonha; quem olha pra dentro, desperta”. Entende que Jung está se referindo à busca de sentido que muitas vezes experimentamos, na vida. Em especial quando as coisas vão mal, tendemos a olhar para o mundo na tentativa de entender “porque” as coisas estão assim. Poucos olham pra dentro.
Entretanto, nos diz o psicólogo suíço, olhar ‘para o mundo’ é continuar a sonhar; é não ver onde estão as causas reais do problema. Pois a realidade está em nosso mundo interno.
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Ou, pelo menos, ele deveria ser parte do processo. Mas a verdade é que para nossa cultura, em geral, o ‘mundo interno’ é percebido como algo inútil, algo não essencial, do que apenas certas criaturas um tanto mimadas – que ‘tem tempo’ para se preocupar com essas coisas – se ocupam.
Acredito que esse tipo de postura exemplifica à perfeição o empobrecimento cultural que nos caracteriza. Falei sobre isso em outros posts (por exemplo, aqui e aqui ).
É parte dessa postura de nossa cultura a idealização da realidade, do real. Espera-se de todo mundo que lide com a realidade concreta, sem recusas, sem dificuldades, sem “mimimi”. Nosso ideal de “saúde psicológica” ou de personalidade seria um sujeito puro real, que não se enredasse nos pântanos da subjetividade e sua sensibilidade inútil.
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É então que lembro de Jung e sua frase. De fato, para a psicanálise, essa suposta relação com o real é, no mínimo, idealizada. Como já tive ocasião de abordar em outro post (que você pode ler clicando aqui), essa relação direta com a realidade é característica da psicose. É verdade que a saúde não se define por uma relação alucinada com o real, mas pretender relacionar-se com a realidade sem nenhuma participação subjetiva tampouco a define.
Na verdade, as coisas são mais complexas, e tudo leva a crer que precisamos subjetivar a realidade para poder adequá-la às nossas demandas, ao mesmo tempo que precisamos levar o real objetivo em conta. Nossa experiência com o real é sempre um misto, portanto. Uma dose de realidade mais uma dose de subjetividade. Sempre. Fora disso, o que temos é… doença.
Mas nossa cultura, como disse, insiste em entender que seria possível, e mesmo desejável, uma relação direta com o real. E nisso elude um aspecto essencial de nosso funcionamento psicológico, que em psicanálise recebe o nome de elaboração.
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“Elaborar” está relacionado com integrar, com transformar uma experiência ego-distônica em algo mais ego-sintônico, com o apropriar-se de uma vivência. Uma aproximação possível se dá com a digestão: assim como na digestão física assimilamos uma substância que literalmente é estrangeira em relação ao nosso corpo, e a transformamos em parte do que somos, parte de nossas células, na elaboração psíquica, “digerimos” as experiências transformando-as em algo nosso, algo subjetivo.
A impossibilidade de elaborar, em geral, define um “trauma” : tende a ser traumática qualquer experiência que exceda a capacidade de elaboração do sujeito. Seja por sua intensidade, seja por ter acontecido muito rápido, sem dar tempo à que uma “digestão” do fato ocorra, seja por precariedade das estruturas subjetivas ou pela monstruosidade da experiência, um trauma seria uma consequência de ter vivido algo impossível de assimilar naquele momento.
Ficamos então com uma experiência crua, “indigesta”, como um corpo estranho alojado em nossa psique, que não poderemos “nem lembrar, nem esquecer”, como dizia Bion – porque ela está literalmente à margem, não entra em nosso campo de ação subjetivo, embora também não esteja propriamente fora.
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Bion, aliás, praticamente define a subjetividade como uma “máquina de elaborar”. Seus conceitos de elemento alfa e beta, a função alfa, o sonho diurno, são todos conceitos relacionados à elaboração (falei sobre eles aqui). Com o que, se concordarmos que nossa cultura desvaloriza a necessidade de elaboração, teremos que concordar que ela recusa a própria subjetividade.
E, realmente, parece ser assim.
Só que é impossível experimentar felicidade sem que a experiência que nos deixa feliz esteja bem elaborada; temos pouquíssimo controle sobre as coisas que excedem nossa capacidade de elaboração (como num trauma), e quase nenhuma capacidade de agir sobre essas coisas. Somos seus reféns, em certo sentido.
Nesse contexto, como entender uma sociedade que supervaloriza a felicidade, o controle e a atitude, como a nossa, mas ao mesmo tempo desvaloriza a subjetividade e a necessidade de elaboração das experiências, que são as condições concretas para que aquelas coisas possam ser alcançadas?
A subjetividade é o caminho para o real. Mas é preciso olhar pra isso –