Se não me falha a memória foi Platão que utilizou a metáfora da “rede de pesca” para falar da maneira como nossos conceitos se relacionam com os objetos da realidade.
A ideia era simples: nós e a realidade estamos em planos diferentes, exatamente como um pescador e sua presa; nós não vemos os peixes, não conhecemos muito sobre eles… mas uma rede, bem preparada, poderá pegar algum deles e o trazer ao nosso plano – e aí poderemos conhecer um pouco mais. Assim, também, uma teoria bem cunhada poderia “encaixar” num pedaço de realidade e nos permitir aprender sobre ele.
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Há toda uma epistemologia aí, e imagino que Platão queria chamar a atenção para a relação de adequação mínima que deve existir entre a “rede” – o conceito, as teorias – e os “peixes” – os objetos aos quais esses conceitos se referem.
Assim, uma rede frouxa demais, simplesmente deixaria os peixes passarem por ela; uma muito apertada, não seguraria os peixes; eles desviariam dela, simplesmente.
É necessário que a rede tenha mais ou menos o tamanho dos peixes que se quer pegar. Como num “lego”, onde brincamos de encaixar peças, é preciso que as duas partes tenham estrutura análoga, senão não há encaixe.
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A metáfora do “lego” nos permite salientar como é difícil o processo científico, que consistiria em “encaixar” as duas partes sendo que conhecemos e vemos apenas uma; não sabemos se a outra peça encaixa nem, a rigor, se existe uma outra peça que sirva naquele encaixe.
A ciência poderia ser aproximada desse jogo de criar peças de lego – conceitos – com um encaixe cada vez mais exato com alguma parte da nossa experiência. De forma tateante, rascunhando as quinas e as dimensões aproximadas de cada objeto, conseguimos avançar, e hoje dispomos de uma série de relações bem estabelecidas entre conceitos e objetos. Aprendemos a fazer boas redes para alguns peixes, digamos assim.
Mas aí chegamos na psicologa.
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A psicologia é uma ciência recente. Apesar de sua centralidade no mundo atual – se entendermos que “coachs”, “místicos” e psicólogos estão todos trabalhando com a mesma coisa – ainda estamos na fase da confecção da peça de lego – os conceitos – e não temos muitos consensos.
A imensa diversidade das experiências humanas – que são os nossos objetos de pesquisa, os nossos legos – dificulta em muito o trabalho, e é sempre um problema saber se existem, afinal, “peixes” comuns, padrão, que sempre servirão em tal rede específica, a despeito de idade, gênero, sociedade, cultura, economia, política…
Há os “pescadores” que entendem que cada um desses aspectos – cultura, idade, política – seriam “lagos” diferentes, com “peixes” específicos, que só poderiam ser pescados ali. Outros procuram fazer redes – conceitos – que sirvam para qualquer lago, acreditando na possibilidade de uma adequação tão perfeita com o peixe que ele seria pego, a despeito de tudo. Há os que preferem pescar lançando ‘bombas’ na água (esses seriam os remédios, para mim) – o que inequivocamente funciona, mas nos informa pouco sobre o peixe vivo. Há ainda os que pensam que os ‘peixes psicológicos’ mudam tão rapidamente, que as redes que serviam em 1980 já não servem nos anos 2000, etc.
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O fato é que ainda não sabemos. Temos algumas redes que se provaram efetivas – alcançam alguns resultados importantes; mas, ao lado disso, temos uma profusão de pescadores, cada um chamando o peixe que pescou de um nome diferente – e uma grande questão é saber se, afinal, se trata de uma nova espécie, ou se é o mesmo que já foi pescado por outro…
Nesse caos, algumas teorias – como a TCC – se destacam justamente pelo esforço que fazem nessa busca de adequação, isto é, pelo foco na tradução de seus conceitos e resultados em termos científicos. Isso é um mérito inequívoco, a meu ver.
Outras teorias, como a psicanálise, perdem espaço pelo relativo desdém que sustentam diante da ciência. Mesmo construindo ‘boas redes’ de pesca, a psicanálise não se esforçou por divulgar isso ao mundo de forma científica – o que, sempre no meu modo de ver, constitui um demérito. Felizmente, isso parece estar mudando.
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Achei importante trazer essa conversa porque, muitas vezes, debatendo com colegas, fico com a impressão de que lhes escapa essa dimensão especulativa, e mesmo criativa, do processo científico.
No final, a certeza é sempre uma inimiga do avanço do saber. E é bom lembrar que peixes podem ser pegos em redes falhas; e que o encaixe em uma peça de lego específica não significa que aquela peça espelhe a estrutura exata da peça encaixada.
Nas redes, no lego, e na vida, existem os “falsos positivos”. Por isso, a ciência, como a pesca, exige paciência. Mas onde encontrá-la, na pressa mercadológica que nos governa?