Na história da filosofia, Empirismo e Idealismo foram duas correntes de pensamento que defendiam posições diferentes e opostas em relação à origem de nosso conhecimento. Grosso modo, a primeira defendia que nosso conhecimento vem da percepção dos objetos da realidade, enquanto a segunda defendia que só podemos conhecer o que já está na nossa mente.
Embora não pareça, a questão continua atualíssima, estando em debate nas discussões sobre o estatuto do mental, no entendimento das doenças psicossomáticas e em muitos outros pontos.
A psicanálise, ao seu modo, reatualizou a questão, transpondo-a para sua teorização sobre como acontece a construção de nossa subjetividade.
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Diria, para simplificar as coisas, que na psicanálise as duas correntes acima – empirismo e idealismo – comparecem, mas em momentos diferentes da maturação subjetiva.
Para a escola inglesa de psicanálise, nossa subjetividade começa na percepção – isso é, nas experiências do corpo. Mas essa percepção não é transposta diretamente em ideias ou imagens (subjetividade). Antes, ela é fantasiada, elaborada imaginativamente, de forma que a transposição da experiência em subjetividade é sempre indireta.
Assim, há um primeiro momento, empirista, onde o corpo realmente ‘recolhe’ as impressões do mundo, e um segundo momento, idealista, onde essa impressão “demanda” uma produção imagética ou fantasiada.
A produção imagética, a fantasia derivada da impressão física, não precisa ser um correlato verdadeiro, ou corresponder 100% com a impressão corporal. Na verdade, o que a psicanálise sustenta é que não há correlação necessária entre esses dois âmbitos. Para a psicanálise inglesa, no entanto, a experiência corporal atua como uma demanda, um incômodo, que leva a subjetividade a agir – pensando, fantasiando, criando subjetividade.
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Sempre do ponto de vista da psicanálise inglesa, uma analogia poderia ser a seguinte: um bebê com fome, chora pelo desconforto corporal; a mãe que escuta esse choro, atribui-lhe um significado, e age em conformidade com ele – dando comida para a criança, por exemplo, ou lhe pegando no colo. Para a criança, a percepção física da fome se misturaria com a experiência de estar sendo alimentada ou embalada. No final, a partir de uma série de experiências desse tipo, a criança formaria uma fantasia (subjetiva) relacionada à essa experiência de ter fome.
O que é importante ressaltar aqui é que a fantasia da criança (construída sobre sua própria experiência corporal) não precisa corresponder a essa experiência (isto é, não se limita à sua percepção). Se, no exemplo acima, imaginarmos uma mãe muito pobre, sem condições de amamentar o filho, e que por isso passe para o filho, a cada mamada rala, essa ansiedade, teríamos na criança uma formação ansiosa relativa à experiência de ter fome.
Perceba que a ansiedade não estava na criança; não estava na percepção dela de seu próprio “ter fome”. Mas, por fazer parte da experiência total, poderia ser incluída nas fantasias / imagens da criança sobre sua própria percepção.
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Poderíamos resumir tudo isso dizendo que há uma descontinuidade entre a percepção corporal e fantasia que se forma sobre essa percepção. Não é que a experiência do corpo não exista; ela só não tem tradução direta em termos mentais. Ou ainda, há uma certa liberdade na feitura dessa tradução.
A imagem a seguir esquematiza esse entendimento, acrescentando ainda uma nova descontinuidade entre as imagens (ou os equivalentes neuronais) formadas no subjetivo (mente) e a linguagem:

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Nesse ponto surgem divergências, dentro da psicanálise mesmo. Autores como Lacan entenderão que a descontinuidade entre o subjetivo e o corpo decorre da linguagem – ao menos, essa é uma leitura possível da obra lacaniana.
O problema, a meu ver, é que, com isso, Lacan é obrigado a situar o inconsciente também – e apenas – como linguagem.
Mas e o inconsciente que não é linguístico? Ou não existiria um inconsciente não linguístico? Questões que pretendo abordar na segunda parte dessa pequena série.