A “falta” em psicanálise

Eis um conceito que me incomoda. Não porque eu recuse ou resista à ideia de ‘falta’ (ao menos, até onde posso ver); mas porque acho que ela mistifica desnecessariamente algo importante.

O quê? A importância do outro para nosso funcionamento.

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Freud postulou a ideia de que todo desejo, no fundo, expressa uma busca por um objeto “perdido”, um objeto que, estritamente falando, não há. Nossa infância seria esse momento em que fomos iludidos, levados a acreditar que esse objeto – o encontro sem resto do desejo com sua satisfação – existia, na mãe, no seio, na nossa continuidade com o objeto.

Mas, para existirmos como sujeitos separados, indivíduos, perdemos esse contato, essa continuidade. Separamos o Eu e o não-Eu, e então necessariamente ‘perdemos’ o objeto – a completude absoluta, a saciedade plena – pois agora há uma distância entre nosso desejo e o objeto de satisfação.

O objeto se torna “outro”, ou parte do “outro”.

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Em toda relação ao outro, então, em todo desejo, algo dessa busca pela completude perdida se reencenaria.

Daí dizer-se que, em psicanálise, que “a falta é constitutiva do sujeito”, isto é, que para haver sujeito, é preciso haver separação, distância, “perda”, do objeto.

Na saúde, na vida adulta, nunca se trata de reencontrar ou não o objeto, mas de lidar com essa falta, de fazer algo com ela. Ser marcado pela falta e aprender a contorná-la nos caracterizaria como humanos.

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Se isso faz sentido, cria, por outro lado, uma série de questões. A primeira e principal, é fazer da ausência de algo uma causa – o que, como pretendo mostrar, não faz sentido algum.

Se a falta de algo fosse causa, poderíamos imaginar que a falta de energia numa pilha seria suficiente para que ela “quisesse” se recarregar. Da mesma forma, que a falta de água num rio seco fosse suficiente para que o rio se enchesse novamente.

São exemplos absurdos, mas que ajudam a expor o absurdo que é aplicar esse mesmo raciocínio ao humano, pois é claro que, se há um desejo pelo objeto, a causa não pode estar na falta do objeto, mas na constituição do desejo ele próprio.

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Outro exemplo nos ajudará a diferenciar as coisas: tenho fome, então nossos teóricos psicanalistas poderão dizer: “há uma falta de nutrientes no seu corpo (ou de desejo, satisfação, objeto, etc), por isso a fome surge, como um desejo de comida (ou prazer)”.

Ao que eu replicaria: ok, mas então como explicar que, estando eu doente do estômago, não tenho mais fome? Seria porque a “falta de nutrientes / objeto / prazer” cessou de existir, ou é porque a constituição do desejo não pode se constituir, dada minha situação estomacal?

Este é meu ponto: a “falta” do objeto (da comida, no exemplo) é apenas uma parte do processo, e nem é a principal. O principal é a formação ativa, no corpo, das condições que são vividas pelo sujeito como “desejo”, e que se entrelaçam com sua saúde e sua homeostase.

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Assim entendemos porque a pilha não “quer” ser recarregada, quando lhe falta energia: é porque ela não tem um corpo onde processos ativos buscam reconduzir as coisas a um estado ótimo, a uma homeostase. Tampouco a pilha busca repetir experiências de prazer.

Esse é o ponto: o que causa nossos desejos é essa estrutura corporal que dispara uma série de buscas, no ambiente, de objetos / pessoas que nos reconduzam à homeostase, e nos deem experiências de prazer / conforto / segurança. Se a falta de algo direciona esse desejo, conforme a história subjetiva de cada um, isso não é a causa do desejo, mas apenas uma de suas determinações secundárias.

O objeto, ou a falta dele, ajuda no direcionamento de nosso desejo, mais ou menos como o vento pode influenciar na trajetória da pedra que atiramos. Mas o vento não causa o movimento da pedra, assim como a falta do objeto não causa o desejo.

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Concluindo, o desejo é expressão, em geral, da saúde do corpo. Os objetos que o corpo visa são, sim, influenciados pelas experiências pregressas do sujeito, mas não causados por elas. O fato da ausência de um objeto não é condição suficiente para que eu o deseje. Pense em quantas coisas você não tem, e me diga se essa “falta” cria necessariamente desejo por todas? Acredito que não.

Agora, se com essa história toda, a psicanálise quer dizer que a completude experimentada (mesmo que ilusoriamente) na relação inicial com o objeto, ainda antes da separação Eu / não-Eu, é o que é perdido quando o sujeito se constitui (e ocorre a separação Ego / não-Ego), com isso eu posso concordar.

Mas é nesse ponto que o conceito de “falta” mascara a importância do “outro”: porque só suportamos a ‘falta’ do objeto porque estamos bem sustentados numa relação com os outros. A qualidade da relação ao outro é o que nos permite sustentar a IN-completude, a falta de objeto. Mas ao focar apenas na falta, deixa-se na sombra a importância do vínculo, como se a falta valesse “por si mesma”.

Assim colocadas as coisas, vemos que se o “objeto” é, no fundo, a completude, então ela não é tanto perdida, quanto trocada: deixa-se uma completude vivida como absoluta pela ausência de separação entre os objetos (mãe e bebê vividos como um) – ou seja, uma completude imaginária – e ganha-se uma completude real, calcada nos objetos reais, agora percebidos como tais. O que se perde se completude se ganha em realidade.

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