Trecho retirado do livro “Hóspede da utopia”, pp 74/77 (ed, Nova Fronteira, 1981). No trecho, Gabeira conversa com um jovem alemão em visita ao interior da Bahia. Estão os dois caminhando e conversando, numa estradinha cercada de mato. O alemão fala um pouco de si, e Gabeira conta sua história.
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“Nasci e fui criado no Brasil. Escapei ao lado português, e às vezes fui feliz e solto, assim como as bananeiras que escandalizam com seu verde, as fontes que brotam dos lugares surpreendentes, os cipós que se entrelaçam, fechando os caminhos.
Num certo momento de minha vida, fui para a Europa e tomei um longo banho de razão. Marx era minha especialidade e paixão intelectual: socialismo, comunismo, o fim do Estado, as coisas se desenrolavam com extrema precisão nesse esquema mental e eu me sentia seguro e confortado.
Contudo, o tempo histórico ia revelando saídas diferentes das previstas nos manuais. Um sólido edifício de previsões, com todas as suas sequências lógicas e irrefutáveis, começava a ruir. No princípio, sempre aquele mal-estar. Não está acontecendo nada, dizíamos irritados para nós mesmos. Ou então: são apenas pequenas exceções que confirmam a regra.
Quando a sensação de perigo se fez mais forte, foi um corre-corre da economia para a filosofia, da filosofia para a antropologia, uma busca desesperada ao encontro de algo que explicasse melhor o enigma do passado, deslindasse o labirinto do presente e apontasse os contornos de um incerto futuro. Qual, amigo. Sigo buscando até hoje. Agora sei apenas que as coisas não aconteceram exatamente como Marx previu e fico satisfeito em sentir que a realidade não se deixa aprisionar completamente numa teoria. Obscurantismo? Não creio. O fascínio do progresso intelectual sobreviverá para sempre mas ninguém conhece o futuro em todos os detalhes, mesmo porque seria muito triste – a sucessão de fases, tais como descritas nos livros, não existe exceto em nossas cabeças. O futuro é muito mais aberto. Que bom.
Agora vivia uma boa parte do tempo no Brasil. A revolução proletária socialista não era meu norte, nem meu critério moral absoluto, diante do qual todas as atitudes se medem. Estava interessado na felicidade das pessoas e às vezes cuidava das transformações que não dependiam da tomada do aparato estatal.
[…] Os marxistas eram os interlocutores viáveis, pois colocavam diretamente a questão da solidariedade humana. Só que viviam com uma noção de progresso e de etapas muito distante do que me parecia a realidade, quase tão distante como a ideia do reino dos céus […].
O estrepitoso desmoronar do edifício intelectual acabou não sendo o desastre que eu esperava. Inúmeras questões pessoais estavam sufocadas por debaixo das certezas eternas, e agora lentamente iam pedindo passagem, surgindo à tona, cristalinas e irresistíveis. Por incrível que possa parecer, era difícil entregar-se ao amor quando se imaginava ter todas as respostas para o desenvolvimento do mundo […]
[…] Agora que os santos Marx e Engels quase não mais me socorriam, podia perguntar abertamente até que ponto me dispus ao amor, até que ponto me transformava numa pessoa nova que pudesse povoar as sociedades do futuro, ou pelo menos representar um esboço dos habitantes de amanhã […]
De fato não se tratava de nenhuma certeza. A simples dúvida colocava em marcha uma infindável gama de possibilidades […], só restava trilhar caminhos desconhecidos, virar, em síntese, dentro dos limites, um hóspede da utopia”.