Religião Natural

Nietzsche dizia que todo conhecimento é perspectivístico; isto é, ele parte necessariamente de um lugar, de um ponto de vista. Se nos movemos um pouquinho para o lado, aquele conhecimento deixa de ser válido. Perdemos a perspectiva que o fazia “real”.

É o mesmo que dizer que todo conhecimento, toda verdade, tem um contexto que a sustenta – e, sem o qual, aquela verdade simplesmente não vale mais.

Isso insere um relativismo no conhecimento, na própria ideia de “verdade”, que não me parece ter sido totalmente digerido pela nossa cultura, mesmo hoje. Ainda acreditamos em “uma” ideia de verdade, em “um” ponto de vista verdadeiro, científico, etc.

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Penso nisso quando penso em religião. A religião cristã, em geral, cria uma perspectiva individualista da relação com o divino. O que importa é o indivíduo e seu Deus. Mas e se, usando a sugestão de Nietzsche, saíssemos um pouquinho dessa perspectiva, e olhássemos pra religião desde outro lugar?

Podemos olhar para a religião do ponto de vista da natureza, por exemplo. Ou seja, será que a aspiração ao divino que eu sinto não é um sentimento relativo à uma vida mais ampla, à uma participação em algo maior do que eu, à uma energia que eu percebo difusamente, mas que sei que me atravessa? Uma energia que eu posso chamar de Deus, mas posso também chamar de… Natureza?

Porque esse sentimento pode ser atribuído à qualquer um desses “entes”. Em relação à natureza, nós realmente participamos de um processo maior que nós, individualmente (ou mesmo socialmente). Nós realmente estamos inseridos em mistérios que nos ultrapassam – como ter um filho, ou envelhecer. Nós realmente usufruímos de uma energia – da vitalidade do corpo, da saúde que transborda – que não se reduz à nossa individualidade, mas se conecta com esse todo natural, a partir de nossa idade, nossa alimentação…

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Ou seja, mudando um pouco o foco do olhar sobre o divino, podemos enraizar uma série de sentimentos / pensamentos / intuições religiosos numa base totalmente diferente – e talvez, mais científica? E então é a natureza em nós – o corpo – que nos transmite uma energia que transborda; uma vida – da natureza – que não acaba com a nossa vida; uma morte que é, efetivamente, uma condição para a continuidade do processo natural.

Porque a morte só é um “fim” do ponto de vista da consciência individual. Do ponto de vista do corpo e do processo de evolução da natureza, é necessário que a morte encerre a vida de alguns para dar espaço para novas vidas, novas experiências genéticas. A morte é parte do processo de diferenciação e evolução natural. E, ao morrer, efetivamente voltamos para onde viemos… isto é, a terra, a matéria. Nossos átomos serão reinseridos na cadeia viva que liga todas as coisas. Nesse sentido – do ponto de vista da matéria que nos compõe – somos imortais.

Se Deus, então, o ‘mais alto’ valor, na verdade é apenas uma forma de entender o ‘mais baixo’, o que até aqui tem sido negligenciado como secundário, como “animal” num sentido pejorativo… toda uma nova perspectiva “religiosa” se abre pra nós – , num novo sentido. Agora, igualando Deus e o corpo, há toda uma nova moral para fazer. Não faz mais sentido basear nossa conduta numa ideia de Deus contrária ao corpo, contrária à natureza – e ao sexual, ao prazer, ao crescimento, à beleza…

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Podemos escrever nas novas tábuas da Lei aquilo mesmo que era recusado, na perspectiva antiga. Como a saúde do corpo transborda para a saúde da alma, por exemplo; como a juventude e a beleza são valores, ou mesmo o convívio social, o estar em grupo. Como o sexo, o nascimento, o envelhecimento, são mistérios, dos quais participamos sem entender.

Dessa nova perspectiva, alimentar-se bem, cuidar de sua energia, ou ser sustentável, passam a ser valores importantes. Uma postura ecologicamente conectada seria, afinal, uma forma de render homenagem a esse divino que recém começamos a intuir. Nossa postura atual seria a própria heresia, já que vivemos baseados num sistema de produção e consumo completamente alheio ao ambiente.

Finalmente, dado que o divino seria efetivamente imanente dessa perspectiva, pode ser que não haja mais conflito entre ciência e religião. Talvez a ciência se mostre um caminho para conhecer Deus? Quem sabe. Mudando as perspectivas, tudo muda.

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