….E, mais uma vez, me vejo vítima de meu próprio saber!
De fato, instalado na matriz freudiana de leitura do mundo, ficou claríssimo pra mim que a sexualidade era um impulso básico do ser humano. Como tal, algo que precisava ser reconhecido na cultura, ter espaço, ser uma experiência possível para o indivíduo – independente da “forma” em que esse impulso aparece.
Isso implicou numa certa recusa da religiosidade cristã, entendida como causa de uma desvalorização cultural do sexo.
Tomando uma certa distância, no entanto, fica claro que provavelmente devemos pensar a religiosidade exatamente como pensamos o sexo.
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Nos tempos de Freud, a cultura em relação ao sexo era grandemente influenciada por uma visão cristã que tendeu a desvalorizar o corpo, o prazer, e o feminino. Por outro lado, a natureza se fazia ouvir em cada um, e um óbvio conflito se instalou entre aquilo que vivíamos do ponto de vista individual e aquilo que, socialmente, era dito em relação aos prazeres.
Freud foi um dos responsáveis por destruir os últimos resquícios dessa maneira de entender o ser humano – junto com Nietzsche, Marx, e, segundo Jung, a reforma protestante.[1]
Como muitos pensadores de sua época, no entanto, Freud contribuiu para recuperar a boa consciência da cultura em relação ao sexo, mas, no mesmo movimento, ajudou a criar outro “tabú” em relação à religiosidade, entendendo-a como causa dessa recusa ao funcionamento natural e saudável do corpo.
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Ora, é preciso perguntar, primeiro, se toda religião implica em desvalorização do sexual. E a resposta é um sonoro “não”. Há diversas formas de religiosidade conhecidas no mundo, cada uma delas com uma relação diferente no que toca ao corpo. Basta pensar no Tantra, uma forma de religiosidade oriental que entende o sexo como um caminho de crescimento espiritual. Todo o oposto do que se pensava à época de Freud!
Por outro lado, todas as culturas apresentam algum tipo de religiosidade, até onde eu sei.
Logo, a religiosidade parece funcionar como algo que tem apoio instintual[2]. Vale dizer, como algo tão central e importante quanto a sexualidade.
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No entanto, como mencionado acima, vivemos numa época de “recalque” em relação ao religioso. Ao menos em algumas camadas da população, a religiosidade é claramente desincentivada, como algo antiquado, ligado à crendices e à ignorância.
Difícil não pensar na analogia com a recusa ao sexual, que vivemos por tanto tempo.
Obviamente, se a religiosidade for mesmo um comportamento de base genética, isso não diz nada sobre a maneira como, culturalmente, devemos nos relacionar com ela.
No entanto, ao menos nas culturas cristãs, temos um exemplo claro e ainda recente dos efeitos de recalcar um impulso básico da vida; é no mínimo inquietante pensar que possamos estar fazendo exatamente a mesma coisa, só que em relação a um outro impulso.
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Jung, na contramão da vertente cultural onde localizamos Freud, foi um dos autores que defendeu a religiosidade como um impulso natural. Se o entendi bem, poderíamos pensar que esse impulso ao religioso estaria intimamente ligado à busca de sentido para a existência.
Ora, seria engraçado, pra não dizer trágico, que justamente a psicologia – e a psicanálise – estejam posicionadas, hoje, como ferramentas culturais de criação de sentido, ao mesmo tempo que como argumentos que trabalham contra essa criação – ao recusar a religiosidade de maneira tão dura quanto fez Freud, por exemplo.
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Notas:
[1] Estou pensando no belo texto de Jung, incluído no vol. 15 da obras completas, “Sigmund Freud, um fenômeno histórico-cultural”, pg 38 – 45. Jung, C.G.: “O espírito na arte e na ciência”, 16ª reimpressão, 2021. Editora Vozes
[2] Alguns autores defendem esse ponto de vista da religião como efeito de um instinto. Seguem alguns exemplos:
https://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,ERT138443-17770,00.html
https://super.abril.com.br/historia/por-que-acreditamos/