Há uma questão em Nietzsche, que Jung retoma, que é mais ou menos o seguinte: “qual o sentido do homem?”. Ou ainda: para que, a vida humana? Qual o sentido disso tudo?
Essa questão se insere nitidamente num contexto religioso. Ao constatar que “Deus está morto”, Nietzsche se depara com a necessidade de entender também como a vida ganhará sentido, sem Ele. Grande parte da obra nietzscheana é essa tentativa de resposta.
Mas a questão permanece em aberto.
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Jung retoma essa questão. Porém, mais do que apenas constatar que o Deus cristão morreu, ele tenta responder do quê ele morreu. Que acontecimentos foram necessários para matar um deus?
Uma das respostas vem da própria unilateralidade da visão cristã sobre o humano. O cristianismo, nascido num contexto de grande permissividade moral, teria sentido necessidade de se diferenciar justamente pela austeridade moral que pregava. Vale dizer, uma crítica, uma suspeita, e até uma negação direcionada ao corpo, ao prazer, ao sexo, aos desejos, ao feminino, fez parte do cerne do cristianismo.
Com o tempo, isso criou uma visão de homem excessivamente ideal, angelical demais. Ao ponto dessa visão ter se tornado insustentável, insuflando a reação que hoje vivemos, baseada grandemente numa redescoberta do corpo e dos prazeres.
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Baseada também numa redescoberta da matéria. Pois parte daquela desconfiança cristã neste mundo incluía uma desvalorização do mundo material. O mundo concreto, a própria natureza, foram questionados, na busca de ressaltar o ‘lado de lá’.
Intensificou-se então uma dicotomia entre o que seria espiritual e o que seria material. Em consequência, o corpo, o prazer, o mundo e a matéria, tudo, toda a vida, dirá Nietzsche, foi questionada em favor de uma ideia de “além” baseada na negação disso tudo. Daí que o paraíso não seja material; que lá, não exista corpo, nem brigas, nem desentendimento ou morte.
No dizer de Jung, o cristianismo tomou apenas o lado luminoso da vida, e expurgou o resto para a sombra. Com isso, recusou parte da vida mesma, doravante identificada com a matéria, com algo a ser desprezado. E então, essa visão de mundo ruiu.
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Ou começa a ruir. Historicamente, ainda nos encontramos sob o efeito dessa divisão. A psicologia é um exemplo, com o infindável questionamento sobre o seu lugar nas ciências (é uma ciências humanas? (do esṕírito) ou biológica? (da matéria)). A tendência a identificar o espiritual com algo não-material, não-corporal, também permanece.
Mas os questionamentos surgem por toda parte. Em Espinosa, por exemplo, já no séc XVII, matéria e pensamento são atributos da mesma substância. A alquimia, como mostra Jung, desde o séc I, se caracterizou justamente por buscar o espírito no material, e não alhures. Finalmente, Nietzsche, Freud e também Jung se encarregaram de resgatar a ‘boa consciência’ para boa parte de nossos ‘pecados’; para aquilo que, até então, só podia viver na sombra.
Talvez o próprio materialismo que vivemos hoje seja um efeito “rebote” dessa longa recusa do cristianismo em conceder espaço para o material junto às coisas de valor.
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Caberia levar esse questionamento adiante, e perguntar porquê, afinal, a matéria precisa ser vista como oposta ao processo vivo? Quando tudo o que conhecemos, cientificamente, aponta para o surgimento espontâneo da vida a partir da matéria – dadas certas condições, é claro -, não seria legítimo aproximar esses dois extremos, e passar a pensar a vida como uma das expressões da matéria?
Isso não implicaria, necessariamente, num materialismo brutal, onde todo o “espírito” é abandonado em favor de um vale tudo grosseiro. Afinal, nessa nova visão, a espiritualidade não é algo que se acrescenta à matéria, mas algo intrínseco ao processo vivo, cujas raízes remontam ao material.
Vale dizer, ao abdicar da dualidade excludente entre matéria e espírito, estamos em condições de ver a espiritualidade na matéria mesma, e reencontrar, assim, algo de nossa conexão com o mundo – algo que foi perdido, com o arrefecimento da crença cristã.
Com isso, é todo um mundo novo que surge, recheado de mistérios… um mundo onde nossa conexão com a vida não precisa se basear na fé, mas é apreendida cada vez mais de perto pela ciência. Um mundo onde toda aquela ‘sombra’ recusada pela história encontra lugar novamente, como parte dos mecanismos vitais de evolução. Um mundo onde o próprio lado luminoso da vida ressurge como o maior dos mistérios, se pensado como parte do potencial da matéria…
Mas estamos prontos para abandonar essa dualidade?