Conhecimento, autoridade e multidão

Havia seitas no antigo Egito – em toda parte, na verdade – que mantinham uma relação intrigante com o conhecimento. Elas entendiam que os conhecimentos mais altos não eram para qualquer um; que era necessário ser de uma certa forma, para poder conhecer.

Assim, por exemplo, as seitas “Herméticas” ganharam esse nome por seguirem o pensamento de Hermes Trimegisto, mas eram tão cuidadosos ao compartilhar esses conhecimentos que “hermético” virou sinônimo de “fechado”.

Como explica a filósofa Lúcia Helena Galvão [1], “se vou para o precipício, é melhor que vá a pé, e não de carro”. Remetendo-se a Platão, ela argumenta que o conhecimento nos instrumentaliza, aumenta nossa potência – e essa potência pode ser usada para o bem ou para o mal.

Assim como uma criança não deve manejar uma faca ou um revólver, por não ter responsabilidade suficiente diante dos riscos potenciais, assim também o conhecimento não deveria ser dado para qualquer um, sob pena de ser mau utilizado.

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Isso coloca questões interessantes. A começar pela percepção de que o conhecimento, por si só, não nos transforma moralmente. Haveria muito a dizer sobre isso. Mas meu ponto, aqui, é outro. Ou seja, será que é possível manter a radicalidade de um pensamento quando o abrimos à todo mundo?

O exemplo de Hermes Trimegisto é elucidativo. Sua prática ‘hermética’ indica claramente que eles desconfiavam da multidão como portadora ‘natural’ do saber. Podemos imaginar então que eles valorizavam o indivíduo e sua independência, sua autonomia, sua responsabilidade diante das coisas.

Se buscamos na internet algo sobre Hermes Trimegisto, no entanto, o cenário atual é totalmente outro: vemos uma série de indivíduos usando a autoridade ainda atribuída à Hermes para legitimar uma religiosidade infantil. Na maioria, o que vemos são pessoas querendo validar um pensamento mágico, do tipo “sim, eu posso controlar a realidade, eu posso controlar a minha vida”…

Não questiono essas possibilidades, mas fica a questão: quem já tem controle sobre sua vida, quem já é responsável e independente… faria todo esse barulho sobre isso? E o cuidado com o uso do conhecimento, como fica?

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Mas não precisamos ir tão longe. A história da psicanálise também nos dá exemplos. Embora Freud, enquanto indivíduo, tenha sido (no mais das vezes) bastante cuidadoso sobre o caráter conclusivo de suas teorias, muitos de seus discípulos as tomaram como dogmas. As frequentes brigas e dissensões dentro do movimento psicanalítico praticamente não fazem sentido se tomamos a teoria freudiana como hipótese, como tentativa de descrever algo.

E, no entanto, a psicanálise recuperou algo daquelas antigas correntes herméticas, ao propor que todo analista seja, ele mesmo, analisado – ou seja, ao colocar como condição de atuação enquanto psicanalista uma certa transformação subjetiva, mais do que apenas um saber.

Isso não parece ter sido suficiente. Como se houvesse uma antinomia, um paradoxo, entre aquilo que o indivíduo pode saber e cuidar, e aquilo que pode comunicar.

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Teríamos então, necessariamente, um conhecimento mais cuidadoso e profundo, mas com pouca difusão; ou então um conhecimento difundido, mas sem cuidado e compreensão.

Um resultado natural dessa dicotomia seria a autoridade: se poucos podem (ou conseguem) ascender ao conhecimento mais elevado, quem o consegue adquire, também, certa autoridade.

Historicamente, essa relação se confirma. Sempre houve um vínculo entre conhecimento, sabedoria (moral) e autoridade, mesmo onde essa autoridade não era utilizada (o que se tornou uma forma de generosidade, não só no cristianismo, mas também no oriente).

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Hoje, isso nos coloca questões, porque não lidamos bem com autoridade. Junto à idealização do “indivíduo” que ‘tudo pode’, veio a crítica de toda e qualquer autoridade. Chegamos ao ponto de ver pais em dificuldades para educar seus filhos, por não se sentirem à vontade para impor limites.

Ora, o que isso mostra é que, ao menos em certas condições, a autoridade não é algo ruim. Na verdade, ela é a consequência natural da responsabilidade. Se nos preocupamos com alguém, e se esse alguém está sob nossos cuidados, nós naturalmente adquirimos autoridade diante dessa pessoa. Melhor dizendo: precisamos agir assim, senão não há sentido em usar a palavra responsabilidade nesse contexto.

Vale dizer, não há sentido em ser responsável pelo outro, em cuidar do outro, quando não podemos também pensar e agir pelo outro. É impossível cuidar de alguém quando esse alguém não faz o que nós pedimos.

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Assim, um círculo se fecha: difundir o conhecimento implica em perder a responsabilidade por aqueles se que utilizarão dele. Como pais que permitem tudo aos filhos, o sábio que nada esconde também perde autoridade. Os orientais dizem: “o sábio fala apenas uma vez”. Nisso está implícito que, se aquilo que o sábio diz não é ouvido, há um problema na qualidade dessa escuta… Não vale a pena repetir uma verdade para quem tem os ouvidos fechados. Não é possível forçar alguém a querer se educar.

Percebo que muitas noções modernas se chocam com isso, e talvez seja importante dizer que essa é uma imagem do conhecimento, uma imagem que o aproxima da relação entre pais e filhos – a sociedade sendo, em geral, como ‘filhos’ dos mais responsáveis, daqueles que alcançam o conhecimento e sua autoridade, e se encarregam, por analogia, da educação dos demais.

Também fica implícito aí que para chegar à autonomia, é preciso passar por uma fase de dependência – o que encontra respaldo em nossas modernas teorias psicológicas (por exemplo, em Winnicott), mas não em nossa cultura geral.

Nosso senso democrático clama por outras imagens, por outros modelos. O problema é que não vejo nada disso acontecendo. Pelo contrário, ao criticar toda autoridade, parecemos mais com crianças sem pais, do que com indivíduos livres, independentes. Parece haver uma linha tênue separando o que é “abandono” do que é “autonomia”. E tudo indica que perdemos essa linha –

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Notas:

[1] https://www.youtube.com/watch?v=eqRV0K6bzrU&t=1757s

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