Conhecimento e subjetividade. Cultivo de si como condição de avanço no conhecimento

No §6 de “O que falta aos alemães” [1], falando sobre educação, Nietzsche pondera que

“o essencial aí é não ‘querer’, ser capaz de prorrogar a decisão. Toda não-espiritualidade, toda vulgaridade se baseia na incapacidade de resistir a um estímulo – tem-se que reagir, segue-se todo impulso.”

No prefácio de “A Gaia Ciência”, a relação entre espírito e saúde (vida) é enfocada mais ou menos nos mesmos marcos:

“(…) aprendemos a olhar mais sutilmente para todo o filosofar (…); adivinhamos melhor os involuntários desvios (…) aos quais os pensadores que sofrem são levados e aliciados justamente por sofrerem.” [2]

Em suma, para Nietzsche, há uma inegável relação entre as condições de saúde e vitalidade geral e aquilo que pode ser pensado. A própria capacidade de resistir à um estímulo – como, por exemplo, resistir a ver seus desejos legitimados numa teoria – seria uma função dessa vitalidade.

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Daí que conhecer implica numa certa auto-superação – uma crueldade daquele que conhece em relação aos seus próprios desejos [3]. O que também quer dizer que, para avançar no conhecimento, é necessário avançar na crueldade consigo mesmo.

Uma certa relação de crueldade consigo teria como resultado uma certa forma de conhecer. “Quase tudo a que chamamos ‘cultura superior’ é baseado na espiritualização e no aprofundamento da crueldade” [4] – uma tese que um psicanalista dificilmente deixará de entender.

Como já dissemos em outro lugar, para conhecer, é preciso ser de um certo modo. Nem todo conhecimento é acessível a todo mundo. Certas coisas só fazem sentido a partir de certas vivências. Finalmente, essa relação entre conhecimento e vida é o que garante que aquele conhecimento será utilizado de forma responsável. Eu respondo por ele como respondo pelas experiências da minha vida. Não há separação.

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É mais ou menos o que Foucault constata, em seus trabalhos finais. Lemos aí que

“(…) poderíamos chamar de ‘espiritualidade’ o conjunto de buscas, práticas e experiências (…) que constituem (…) o preço a pagar para ter acesso à verdade (…). A espiritualidade postula que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito. (…) o sujeito, enquanto tal, não possui capacidade de ter acesso à verdade (…) a verdade jamais é dada ao sujeito por um simples ato de conhecimento (…). [A espiritualidade, enfim] Postula a necessidade de que o sujeito se modifique, se transforme (…). A verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito “. [5]

Daí a conclusão de que “durante todo este período que chamamos de Antiguidade (…) a questão filosófica do ‘como ter acesso à verdade’ e a prática de espiritualidade (…) são duas questões, dois temas que jamais estiveram separados”. [6]

Ao menos, até a idade moderna. Pois, como constata o mesmo autor, “entramos na idade moderna (…) no dia em que admitimos que o que dá acesso à verdade (…) é o conhecimento e tão-somente o conhecimento” [7], o que se daria mais ou menos articulado ao que Foucault chama de ‘momento cartesiano’.

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Em resumo, a articulação antiga entre os modos de ser e de conhecer, aquilo mesmo que Nietzsche reencontra na espiritualização da crueldade como condição do espírito, foi perdida na passagem para a modernidade.

A consequência foi um modo de subjetivação desvinculado do saber, assim como a produção de um saber que não se ancora mais numa relação de cultivo do sujeito consigo mesmo.

Não é difícil encontrar essas duas figuras em nossa paisagem cultural. Esse sujeito desvinculado de um trabalho sobre o saber seria o sujeito capitalista; essa produção de saber não ancorado no cultivo subjetivo seria o saber científico.

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Desse ponto de vista, boa parte da modernidade se encontra sob crítica. Mas onde essa crítica se organiza / expressa? A leitura de Marx sobre o capitalismo, pelo menos em sua versão vulgar, se dá muito mais em termos de poder do que em termos de subjetividade. Cabe perguntar se algo fundamental não fica de fora dessa crítica ao capital.

Essa falha não é exclusividade do marxismo. Nenhuma das principais correntes políticas de nosso tempo dão importância a esse aspecto moral – o cultivo de si mesmo – como fator de transformação subjetiva e de produção de conhecimento / verdade.

Somente a psicologia – em especial, a psicanálise, a esquizoanálise e a psicologia analítica – trouxe de volta ao debate essas relações entre sujeito e saber. A questão que fica é: como o saber psicológico se relaciona consigo mesmo? Ou ainda: que tipo de crítica, que tipo de crueldade é capaz de sustentar o sujeito psicológico, na construção de uma verdade em tudo excêntrica, num contexto como o nosso? Finalmente: como é possível conciliar esse saber ‘anti-moderno’ com as exigências da modernidade? Questões para posts futuros –

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Notas:

[1] Nietzsche, “Crepúsculo dos Ídolos”, pg 60. Ed. Companhia das Letras, 2006

[2] Nietzsche, “A Gaia Ciência”, prólogo. §2, pg 11. Ed. Companhia das Letras, 2001

[3] Nietzsche, “Além do Bem e do Mal”, §229, pg 135. Ed. Companhia das Letras, 2000

[4] idem.

[5] M. Foucault, “A Hermenêutica do Sujeito”, pg 19/20. Ed. Martins Fontes, 2004

[6] idem, pg 21

[7] idem, pg 22

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