Num texto seminal[1], Foucault estabelece uma diferenciação nos modos de relacionar sujeito e verdade, comparando a Antiguidade e os nossos dias, a partir da importância da espiritualidade.
Em poucas palavras, a espiritualidade seria justamente a percepção de que o acesso à verdade precisa ser mediado por algo da ordem da existência do sujeito. Vale dizer, a espiritualidade é o ‘preço subjetivo a pagar’ para se ter acesso ao verdadeiro. Na palavras de Foucault,
“(…) poderíamos chamar de ‘espiritualidade’ o conjunto de buscas, práticas e experiências (…) que constituem (…) o preço a pagar para ter acesso à verdade (…). A espiritualidade postula que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito. (…) o sujeito, enquanto tal, não possui capacidade de ter acesso à verdade (…) a verdade jamais é dada ao sujeito por um simples ato de conhecimento (…). [A espiritualidade, enfim] Postula a necessidade de que o sujeito se modifique, se transforme (…). A verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito” (FOUCAULT, 2004, pg 19/20)
Essa maneira de relacionar sujeito e verdade teria preponderado no mundo grego e romano, entre os séculos V a.c. e V d.c. Ou seja, por aproximadamente 1000 anos, a produção de conhecimento que esteve na origem de nosso próprio mundo cultural baseou-se num modelo onde a espiritualidade era central. Havia um vínculo estreito entre ‘verdade’ e ‘espiritualidade’. Como comenta o autor, “durante todo este período que chamamos de Antiguidade (…) a questão filosófica do ‘como ter acesso à verdade’ e a prática de espiritualidade (…) são duas questões, dois temas que jamais estiveram separados” [2]
Mas um deslocamento fica visível a partir do séc V d.c: cada vez mais, essa exigência de uma espiritualidade como condição do conhecer foi sendo questionado. Não pela ciência [3] mas pela teologia. Até que, a partir do que Foucault chama de ‘momento cartesiano’, o vínculo com a espiritualidade se rompeu.
Em suas palavras, “entramos na idade moderna (…) no dia em que admitimos que o que dá acesso à verdade (…) é o conhecimento e tão-somente o conhecimento”[4].
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Sempre segundo Foucault, a partir daquele momento, o acesso à verdade se dará mediado por outros fatores. É então que o método, por exemplo, passa a ser fundamental, pois ele ‘garante’ o acesso a verdade, como a subjetividade fazia na antiguidade. De qualquer forma, as mediações e garantias no acesso ao conhecimento já não são mais de ordem subjetiva.
Pelo contrário, é visível como a ciência moderna se estrutura a partir dessa disjunção entre sujeito e verdade. Todo conhecimento científico ‘padrão’ buscará eliminar a subjetividade da produção de conhecimento. Isso praticamente define a maneira moderna de conhecer.
Isso, que parece verdadeiro para a ciência “padrão”, deixa no entanto a psicanálise numa posição desconfortável.
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Pois a psicanálise opera justamente com as transformações subjetivas. Ou seja, nela, a posição do sujeito não pode ser desconsiderada. Pelo contrário, o sujeito, sua formação e transformação, estão no cerne da produção do saber psicanalítico. São seu objeto de estudo.
Assim, a psicanálise coloca-se, de saída, na linha demarcatória que separa nossa moderna cientificidade e as formas antigas de acesso à verdade. Vale dizer, Freud recupera, involuntariamente, algo da espiritualidade na relação entre sujeito e verdade.
Isso aparece quando ele propõe, por exemplo, que a eficácia de uma interpretação depende do que ela produz no sujeito, e não da sua veracidade. Não é que a psicanálise desconsidere a realidade, mas a realidade tende a ter menos valor do que a apreensão subjetiva dela. É também o que conceitos como o de “gesto espontâneo”, ou “espaço transicional”, sinalizam, em Winnicott, pois a vivência subjetiva é o fundamental nesses construtos.
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Isso não é óbvio, e muito menos simples. Ao assumirmos o ponto de vista de Foucault, podemos identificar aqui o cerne de uma das questões mais antigas a rondar o saber psicanalítico, ou seja, seria possível constituir um saber científico (= subjetividade excluída) da subjetividade? Ou será que, inversamente, é a psicanálise quem deve criticar o saber científico sem sujeito?
É ainda Foucault que sugere faltar à psicanálise pensar teoricamente essa sua posição. Ou seja, faltaria à psicanálise uma crítica da sua produção de saber, falta que acarretaria num ‘positivismo, um psicologismo, para a psicanálise” [5].
Penso que a posteridade freudiana produziu respostas à questão colocada por Foucault, e é isso que pretendo apresentar nas próximas partes desta série.
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Notas
[1] M. Foucault, “A Hermenêutica do Sujeito”. Ed. Martins Fontes, 2004. Link do livro na Amazon: https://amzn.to/3wTIovW
[2] idem, pg 21
[3] idem, pg 36
[4] idem, pg 22
[5] idem, 39/40
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