Na primeira parte desta série, apresentei o argumento de Foucault segundo o qual haveria uma história das relações entre sujeito e verdade, no ocidente, passível de ser estruturada em dois momentos: um primeiro, onde o acesso do sujeito à verdade é necessariamente mediado por uma espiritualidade, e um segundo, o nosso, onde esse acesso prescinde de qualquer transformação subjetiva, ou espiritualidade.
Grosso modo, reconhecemos o primeiro momento como vigorando entre os séculos V a.c. e V d.c., na Grécia e Roma antigas, ao passo que o segundo momento se estrutura claramente com o que Foucault chama de “momento Cartesiano”. Esse último estaria em preparação desde o Vº século da nossa era, para eclodir plenamente a partir do século XIV.
Ainda nessa primeira parte, mencionei que a psicanálise ocuparia uma posição intermediária nessa história, na medida em que não pode prescindir da posição do sujeito na produção de seu conhecimento, à exemplo do que se espera em qualquer ciência “padrão” de nossos dias.
Hoje quero falar um pouco mais sobre essa posição ímpar da psicanálise, deixando claro em que ela se aproxima da produção de saber antiga.
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Na página 39 de seu seminário de 1982 [1], Foucault comenta, talvez ironicamente:
“Se é verdade, como dizem todos os cientistas, que podemos reconhecer uma falsa ciência pelo fato de que, para ser acessível, ela demanda uma conversão do sujeito e promete, ao termo de seu desenvolvimento, uma iluminação do sujeito […] de imediato reconheceremos [nisso] uma forma de saber como o marxismo ou a psicanálise”
Ou seja, como prossegue o autor, ” no marxismo como na psicanálise […], o que se passa com o ser do sujeito [… estará] no cerne mesmo destes saberes” [2] .
Já abordamos esse ponto na primeira parte de nosso texto. A psicanálise, na medida em que trabalha sobre a verdade fundamental do sujeito em análise, propõe uma espécie de saber ‘binocular’, ou complexo, no qual aquilo que é verdade para o indivíduo, nem sempre se traduz numa lei geral, e, inversamente, as (poucas) leis gerais que são formuladas nem sempre se aplicam ao sujeito particular [3].
Todo terapeuta sabe que cada paciente demanda uma nova teoria para si, uma teoria que deve fazer a mediação entre aquelas leis gerais que a psicanálise estabelece, e a ‘lei particular’ do qual o paciente é, talvez, o único exemplo.
Mas, o próprio da psicanálise será justamente sustentar que ambos os pontos de vista – o geral e o particular – são necessários.
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Isso faz com que a psicanálise esteja sempre “com um pé em cada canoa”, por assim dizer. Ela enuncia leis gerais, extraídas da clínica, e por vezes até validadas pela ciência normal (ver aqui alguns exemplos), mas, muitas vezes, essas leis gerais só encontram aplicação prática após um período de “conversão”, poderíamos dizer, onde, junto com o terapeuta, o paciente faz a tradução de seu caso específico para aquilo que já está estruturado como lei geral.
Fica bem claro como a relação disso com a ciência normal é, no mínimo, controversa.
Porque o que se espera da cientificidade em geral é que ela abarque os fatos tais como eles se apresentam naturalmente… em sua essência “pura”, por assim dizer. Mas, em psicanálise, nenhum paciente corresponde 100% com a teoria… porque o específico da psicanálise estaria justamente na junção entre a singularidade do sujeito e as regras gerais do desenvolvimento humano.
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Em outros termos, a psicanálise precisa levar em conta a singularidade dos casos particulares. E isso a aproxima daquela antiga relação entre sujeito e verdade, caracterizada pela espiritualidade.
Ao mesmo tempo, ela tenta abarcar generalidades, para se aproximar da produção de saber científica. Mas acaba sendo um resultado “híbrido”.
Eis alguns exemplos de pontos onde a teoria ou a prática clínicas são bem mais próximos da forma antiga de relação sujeito / verdade:
- desde Freud se defende que a eficácia de uma interpretação depende do que ela produz ao nível subjetivo, mais do que de sua verdade ‘objetiva’.
- a noção de “transferência”, tal como foi proposta por Freud, implica justamente em que o aspecto subjetivo de uma relação se impõe, mesmo às custas da realidade; ou seja, a relação subjetiva é mais importante, para a cura, do que os aspectos objetivos dessa mesma relação.
- vários conceitos de Winnicott se centram na necessidade de valorizar a vivência singular, o aspecto subjetivo ou aperceptivo de cada sujeito, para além do que seja dado na percepção real. Um exemplo é o conceito de “espaço transicional”, que assinala justamente a necessidade de se manter um espaço que seja ao mesmo tempo interno e externo. Mas voltaremos a Winnicott mais adiante.
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Como se vê, são questões centrais do funcionamento analítico. Pareceria, então, que a psicanálise seria um híbrido por necessidade, isto é, não seria contingente sua posição deslocada em relação à ciência normal, na medida em que precisa levar em conta a singularidade da história de cada um.
Cabe ao futuro decidir se isso representa uma crítica da ciência à psicanálise, ou se, inversamente, é a psicanálise quem representa uma crítica ao saber científico (entendido, como falamos antes, enquanto “saber sem sujeito”).
Mas Winnicott ainda nos parece ter algo a dizer sobre isso. (continua)
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Notas:
[1] M. Foucault, “A Hermenêutica do Sujeito”. Ed. Martins Fontes, 2004. Link do livro na Amazon: https://amzn.to/3wTIovW
[2] idem, pg 39
[3] Isso é tão característico da psicologia profunda que virou uma regra, em Jung: “O individual não importa perante o genérico, e o genérico não importa perante o individual”. Jung, C. G. (1988) Princípios básicos da prática da psicoterapia. In A prática da psicoterapia: obras completas de C. G. Jung (Vol. 16, part 1, pp. 13-31). Petrópolis, RJ: Vozes
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