Estou lendo as cartas trocadas por Freud e Jung [1], e há muita coisa interessante nelas.
Este post é um pequeno comentário de pontos selecionados.
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O primeiro ponto, que salta à vista, é como ambos os autores, realmente, eram independentes desde o início.
Há uma tendência, entre os autores freudianos, a ‘subsumir’ Jung enquanto apenas “discípulo” de Freud, o que não se verifica na correspondência.
É verdade que Jung adotou grande parte dos pontos de vista freudianos, mas nunca deixou de ter seu próprio ponto de vista, suas contribuições e discordâncias, e principalmente, de zelar por elas.
Já a partir de 1908, ou seja, pouco mais de um ano depois do primeiro contato entre eles, fica visível a animosidade, e até mesmo a competição, entre os dois grandes homens.
É óbvio que isso era equilibrado e “ajustado” no contexto de outros interesses, inclusive uma mútua admiração. Mas não escapa ao olhar que a tragédia de seu rompimento, o qual viria a eclodir completamente apenas em 1913, já estava claramente anunciada fazia muito.
Essa é a impressão do próprio organizador das cartas, conforme informa no início da “Introdução”.
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Outro ponto interessante é o quanto Jung trabalhou, o quanto fez, pela causa da psicanálise.
Depreende-se das cartas que Jung foi uma espécie de “Primeiro-ministro” do movimento psicanalítico, e isso desde 1907, quando ganhou a confiança de Freud.
Foi Jung, por exemplo, quem apresentou Freud à Ferenczi, Ernest Jones, Brill, Hall, Bleuler, todos grandes nomes da psiquiatria da época. Jung também defendeu a psicanálise diante de nomes importantes do campo “psi”, como Ludwig Binswanger, Franz Riklin, Pierre Janet, Edouard Claparède, Theodore Flournoy.
Não à toa, o primeiro congresso internacional de psicanálise ocorreu na Suíça, organizado por Jung. Ele foi o responsável, também, pela criação da primeira grande publicação semestral relativa à psicanálise, o Jahrbuch (Jahrbuch für psychoanalytische u. psychopathologische For-schungen), em 1909.
Em suma, grande parte da “legitimação” da psicanálise junto à comunidade psiquiátrica deveu-se à Jung – auxiliado, e mesmo incentivado, por Freud.
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Achei interessante, também, como nas cartas transparece a importância que Freud dava à experiência clínica, para além da teorização abstrata.
Em muitas passagens vemo-lo demovendo Jung de construções teóricas sem base clínica.
Assim, nas primeiras trocas entre os dois, vemos Jung “batendo cabeça”, na clínica, para ao final reconhecer, com humildade, que Freud estava certo, em especial no campo das neuroses.
No tocante à demência precoce, condição que pouco chegava à clínica freudiana, é Jung quem tenta preencher o vazio da experiência, a partir das poucas fórmulas que Freud se sentia em condição de anunciar.
É muito importante, enfim, o papel dado por Freud àquilo que efetivamente acontece, no encontro clínico. Mesmo que, conforme comento adiante, essa segurança baseada na experiência pareça ter servido, também, à outros propósitos subjetivos.
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Nesse contexto fica transparente, ao menos para mim, o quanto os dois homens eram diferentes, na sua maneira de se relacionar com o científico.
Freud parecia dar primazia à experiência, mas sua relação com os dados era mais complexa. É como se Freud fosse um “filósofo inconsciente”, isto é, alguém que precisava erigir sistemas, teorizações amplas, etc, e contra esse impulso imaginativo, tivesse se agarrado à ciência.
Tudo se passa, então, como se o dogmatismo científico de Freud – que até hoje lhe rende críticas – fosse uma expressão “deslocada” desse impulso criativo. Uma projeção, inconsciente, de algo que não foi conscientemente integrado.
Jung, por seu turno, parece se lançar abertamente à imaginação, e não sentir necessidade de “recalcar” esse movimento. A ciência, então, aparece nele como uma espécie de “crivo”, um horizonte a ser considerado na tradução entre suas vivências imaginativas, e aquilo que pareceria palpável, compartilhável, à época.
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Não necessariamente, um uso do científico é melhor do que outro. Mas o que as cartas deixam claro é o quanto Freud intencionalmente delimitou seu campo de atuação teórica, ao passo que Jung se deixava tomar por tudo quanto era hipótese.
Bom, não todas, é claro, mas havia desde o início uma diferença, na postura dos dois, em relação ao que pensar sobre os fenômenos parapsicológicos, ou àquilo que parecia extrapolar o campo da experiência “normal”.
Jung se interessava vivamente por isso, ao passo que Freud o recusava terminantemente.
Esse foi um dos motivos da desavença crescente, que acompanhamos nas cartas, principalmente a partir de 1909.
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Isso explica também, penso eu, parte das diferenças nas psicologias que os dois criaram.
Apesar de sua tendência à metafísica (como ele mesmo reconhece em algum lugar), Freud busca sempre amarrar sua construção teórica à uma vivência clínica. Jung não sente necessidade de aproximar tanto esses dois campos, e assim sua psicologia se permite vôos muito menos concretos.
Mas ambos concordariam, penso eu, que essas diferenças deveriam ser discutidas sempre tendo como pano de fundo os resultados práticos alcançados.
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Notas:
[1] “Freud/Jung: Correspondência completa”. Organizada por WILLIAM McGUIRE, na tradução brasileira editada pela Imago Editora Ltda.