A personalidade de Freud e a psicanálise

Há algo de curioso na personalidade de Freud que, agora percebo, parece ter contaminado a maneira como a psicanálise funciona – ainda hoje.

Me refiro à postura combativa de Freud. Sua insistência de estruturar as discordâncias em termos de “nós OU eles”. A facilidade com que ele interpreta, sempre de novo, que o “outro” está resistindo.

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Isso fica muito claro, lendo as cartas de Freud à Jung. Vemos, ali, repetidas vezes, um Freud amargo, que dificilmente se alegra. São comuns as tiradas do tipo: “não temos que prestar atenção à essa psiquiatria antiga; o futuro pertence à nós”, etc. Ou seja, já em 1908, Freud estruturava suas relações com a tradição em termos de guerra e desvalorização do outro.

Isso, obviamente, teve um lado positivo. É razoável concordar com Freud quando atribui grande parte das resistências à psicanálise à resistências morais, inconscientes, dos opositores. Aquilo que é reprimido, no mundo interno da pessoa, aparece projetado, como “crítica à psicanálise”.

Mas Freud assumia essa posição contra tudo. Mesmo os colegas psicanalistas, quando divergiam em algum ponto, cedo se viam obrigados a decidir entre um “nós ou eles”. O que terminou dividindo a psicanálise em várias “escolas” – Adler, Jung, Ferenczi…

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Há algo, nessa postura freudiana, que se parece muito com “independência”. Independência em relação ao outro, independência em relação aos saberes tradicionais, independência em relação à aprovação do público… É claro que essa independência ajudou, e foi mesmo uma necessidade, dado o conteúdo “contra-cultural” da proposta psicanalítica.

Mas parece que ela também contaminou a teoria, e até a maneira com que a psicanálise foi adotada, pelos herdeiros de Freud. Penso especialmente em Lacan, para quem essa relação com o “outro” está no centro do debate, e uma certa “independência” é erigida como ideal de fim de análise.

Desnecessário dizer que ambos – Lacan e Freud – não são apenas isso. Mas é preciso ver, também, com que dificuldade Freud lidou com as tentativas, que foram se somando, de abrir a psicanálise para a necessidade oposta, ou seja, para a importância da dependência que temos, em relação aos outros.

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É difícil traduzir, aqui, a impressão que colhemos, lendo as cartas de Freud. Algumas delas dão a nítida impressão de um sujeito capaz de pôr tudo a perder, menos … a independência. Como se essa independência não estivesse balanceada, equilibrada, no contexto de suas demais virtudes. Como se Freud não a controlasse, mas fosse controlado por ela. Como se ela fosse… um sintoma?

Outra passagem da vida de Freud me faz pensar a mesma coisa. Trata-se do momento em que os nazistas estavam se aproximando perigosamente de sua família [1] (Freud era judeu), e, para poder sair da Alemanha, Freud precisou assinar um termo, dizendo que não tinha sido maltratado, etc.

Freud assina o termo, mas acrescenta algo como: “Fui muito bem tratado; recomendo os portadores para todos!”. Ou seja, faz uma piada, um deboche, diante dos oficiais nazistas! O gesto, que pode parecer corajoso, foi também extremamente temerário. Mais uma vez, vemos o autor colocando tudo em risco, menos sua independência.

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Tudo isso chama a atenção, quando pensamos no contexto do “embate” que acontece entre terapeuta e paciente. Parte do desenvolvimento da psicanálise pós-freudiana consistiu justamente em reforçar que não podemos forçar o paciente a aceitar a verdade; que é necessário acompanhá-lo, respeitar seu ritmo.

Ou seja, que é necessário abdicar um tanto de nossa independência, para adaptarmo-nos ao tempo do outro. Todo o contrário desse Freud independente “demais”[2].

No entanto, essa “independência” – idealizada – em relação ao “outro” me parece ainda coexistir, na praxis de muitos analistas, especialmente no terreno das nossas relações políticas entre colegas. Talvez a intolerância em relação aos erros “dos outros” devesse ser melhor compreendida – sob o risco de estarmos projetando uma falta que é nossa.

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Para concluir, é claro que uma relativa independência acompanha, sim, a saúde psíquica, mas “independência” não é a mesma coisa que “negação da importância do outro”. Olhando em retrospecto, muito do que Freud fez pode ser questionado, a partir dessa diferenciação. Afinal, havia necessidade de tratar a psicanálise como um “movimento”? Ou ainda, porque considerar as diferenças de opinião como algo que necessitava ser excluído? A própria postura científica, tão defendida por Freud, sugeria bem outra coisa.

Mas talvez ele não estivesse de todo livre, para escolher, nesse caso. Nós estamos – ou deveríamos estar –

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Notas:

[1] E, detalhe: ele não queria fugir para Londres, o que só se decidiu a fazer quando sentiu que poderia perder a filha Anna. A história é contada por Peter Gay, em sua biografia de Freud

[2] Embora seja verdade, também, que ele reconhecia – teoricamente – essa necessidade de adaptação ao paciente. Mas alguns de seus relatos de caso testemunham o contrário. Penso especialmente no “Homem dos lobos”

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