O livro de Marie-Louise Von Franz sobre a morte [1] conjuga duas áreas que não costumam andar juntas, ao menos fora do mundo junguiano: a pesquisa científica e as indagações sobre os sonhos e a morte.
Olhado desde dentro do panorama junguiano, no entanto, o projeto faz sentido. Para Jung, o sonho expressa a voz da natureza no sujeito, por assim dizer. Ele não seria, como em Freud, a expressão disfarçada de um desejo, mas a maneira como a natureza, os instintos, se expressam em nós; “objetivamente”, poderíamos dizer.
Von Franz alude a essas diferenças, argumentando que muitos sonhos de pessoas próximas à morte são brutais, especialmente quando elas se recusam a acreditar no fim.
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Os sonhos de pessoas próximas à morte mostrariam, assim, o que a natureza “pensa” sobre esse processo, e NÃO o que o sujeito deseja.
É um bom ponto, embora fiquemos, sempre, em dúvida no tocante à interpretação desses sonhos. Não há garantias, afinal, de que o sentido deles aponte para um lado ou para outro.
Superada essa questão, o livro prossegue, fazendo “ampliações”, aproximações, entre o conteúdo dos sonhos coletados e os mitos e tradições antigas que tratam do tema da morte. Marie-Louise é, como em geral são os junguianos, uma boa intérprete de sonhos, e é sempre interessante vê-la em ação.
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Sempre seguindo a autora, os sonhos e os mitos relacionados à morte parecem sugerir que essa última é entendida “pela natureza” como um processo de transformação, entre outros – e não como “o” fim.
Ou seja, o inconsciente não diferenciaria a morte das diversas transformações que fazem parte da vida. Por exemplo, seria comum sonhar com a morte quando passamos da adolescência para a vida adulta, já que, nessa fase, uma forma de “ser” mais infantil também “morre”.
Os sonhos de morte real, que realmente sucedem ao sonhar, sugeririam, então, que morrer é uma transformação como qualquer outra. Isso abre espaço para pensar que existiria algo, para o indivíduo, após essa “transformação”. Ou seja, que ela não seria o fim. Não fica claro, no entanto, que tipo de consequência a autora tira dessa interpretação.
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Tentando conjugar a proposta junguiana com aquilo que faz sentido para mim, entendo que a leitura de Von Franz até se sustenta, desde que entendamos que o sonho expressa a voz da natureza, e a natureza “não morre” quando nós, indivíduos, morremos.
Vale dizer, o fato de os sonhos não expressarem a morte como um “fim” não quer dizer que os sonhos atestem qualquer tipo de vida após a morte para o sujeito. Ao menos, não de forma absoluta e inquestionável.
Como disse, não fica claro se essa é a conclusão da autora, ou se, de maneira congruente com sua motivação científica, ela deixa a conclusão em aberto [3].
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Sobre a utilidade desse tipo de pesquisa, chamou-me a atenção uma frase de Jung, que a própria autora reproduz. É um convite que parece fazer sentido, apesar de situar-se na direção contrária daquilo que nossa cultura sustenta.
Von Franz argumenta que parece ser “de suma importância para o idoso familiarizar-se com a possibilidade da morte”. E na sequência, cita Jung:
” Uma questão categórica lhe é colocada [i.e., ao idoso], e ele é obrigado a respondê-la. Para bem poder fazê-lo, ele precisa de um mito da morte […] Se acreditar [nesse mito], não estará nem mais certo, nem mais errado do que aquele que não crê. Mas ao passo que o desesperado caminha rumo ao nada, aquele que deposita sua fé [no mito] segue o trilho da vida e vive por inteiro até morrer. Ambos, é claro, continuam na incerteza, mas um vive contra seus instintos, e o outro, não“
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A ideia de viver de forma integrada aos nossos instintos é o que faz sentido. E se os sonhos são “a voz da natureza” em nós, eles bem poderiam fazer essa ponte entre nossa consciência e nossa natureza. Esse é, justamente, um dos convites da psicologia de Jung, se o compreendi bem.
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Notas:
[1] Marie-Louise Von Franz: “Os sonhos e a morte”. Ed Cultrix, 2ª edição, 2021. Link do livro na Amazon: https://amzn.to/3BdLygU
[2] idem, pg 16
[3] Conforme li depois, numa entrevista, a autora não se sente segura para afirmar que um sonho se refere à morte como tal, ou à morte enquanto símbolo de transformação. Nos diversos sonhos que interpretou, ela nunca “predisse” aos pacientes que aquele sonho indicava morte física. Ver https://www.youtube.com/watch?v=2MZ0G4PEe2g&t=5711s, ou também o livro que se originou dessa entrevista, publicado no Brasil como “O caminho dos sonhos”
Muito interessante. Também interessante de pensar como é uma narrativa (mitológica) que desanuvia, endireita, o par ser-instintos. precisa uma fabricação de sentidos “mágica”, costurada parcialmente no coletivo, para dar lugar tranquilo à morte-passagem. E, realmente, a natureza sobrevive.
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Realmente, é interessante. Por um lado, por ser “contracultural” falar a verdade, hoje em dia – parece que ninguém mais morre… Por outro lado, por implicar numa defesa das “potências do falso”, como dizia Deleuze (e Nietzsche!).
Ou seja, não sabemos o que acontece depois da morte, mas, até cruzarmos essa linha, faz diferença viver apoiado numa crença, ou viver sem esse apoio. Acontece que, por conta de nossa cultura “anti-humana”, mesmo aquilo que nos seria natural parece sem lugar…
(Que coleção de posições complicadas, essa minha resposta, kkkk)
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