Freud comenta o “Símbolos da Transformação”, de Jung – parte 1

Em algumas cartas, Freud chegou a comentar o trabalho de Jung, “Símbolos da Transformação”. Esse trabalho, historicamente, marcou o afastamento dos dois autores. Mas, durante um tempo, os dois conversaram sobre suas diferenças, e isso ficou registrado nas cartas.

Transcrevo os trechos relacionados abaixo [1]:

***

Carta 280, de Freud, escrita em 12/11/1911:

“Uma das melhores obras que li (novamente) foi a de um famoso autor sobre “Transformações e Símbolos da Libido”. Nessa obra, muitas coisas são tão bem expressas que pareçam assumir forma definitiva e, sob essa forma, imprimem-se na memória. Às vezes tenho a impressão de que o seu horizonte tem sido por demais limitado pelo Cristia­nismo. E, por vezes, o autor parece estar mais por cima do material do que por dentro dele. Mas é a melhor coisa que esse promissor ensaísta escreveu até agora, embora possa vir a fazê-lo ainda muito melhor. Na parte referente aos dois modos de pensamento, deploro a sua extensa leitura. Gostaria que tivesse dito tudo com suas próprias
palavras. Cada pensador tem o seu próprio jargão e todas aquelas traduções tornam-se tediosas.”

“Por outro lado, sinto-me satisfeito com os muitos pontos que estão de acordo com coisas que eu já disse ou gostaria de dizer. Uma vez que esse autor é o senhor mesmo, continuarei mais direta­mente e admito: para mim é um tormento pensar, quando concebo aqui e ali uma idéia, que possa estar tirando algo do senhor ou apropriando-me de algo que poderia muito bem ter sido adquirido pelo senhor. Quando isso acontece, sinto uma perda; comecei diversas cartas oferecendo-lhe várias idéias e observações para seu próprio uso, mas nunca chego a terminá-las porque isso me parece ainda mais
indiscreto e indesejável do que o procedimento contrário. Por que, meu Deus, me permito segui-lo nesse campo? O senhor deve dar-me algumas sugestões. Mas, provavelmente, os meus túneis serão muito
mais subterrâneos do que as suas escavações, e não tomaremos conhe­cimento um do outro, mas cada vez que eu subir à superfície poderei saudá-lo. “Saudações” é uma boa deixa para encerrar esta longa
carta. Preciso apenas acrescentar um “sinceras”, que envio também à sua esposa e filhos.”

***

Contexto: Jung começara a estudar a fundo mitologia após a viagem à América, que fez junto de Freud (1909). Nessa viagem, um sonho particular chamou a atenção de Jung para os extratos mais antigos da mente humana, e isso o colocou na pista da mitologia. A relação entre Jung e Freud, a partir desse ponto, parece sofrer um distanciamento, um esfriamento.

Eles até se percebem próximos, e com o mesmo interesse mitológico, por um lado, mas, por outro, como ficamos sabendo pelo prefácio à 3ª edição do livro de Jung, esse sentia-se “asfixiado” pelo horizonte mais delimitado onde Freud se movia.

Após um encontro pessoal, no congresso de Weimar (setembro de 1911), onde Jung apresentou pessoalmente suas ideias à Freud, tendo publicado a primeira parte de sua obra poucas semanas antes, a relação entre eles sofre nova “torção”, perceptível nas cartas. Freud não dera suas impressões de imediato à Jung, que parece ter se ressentido disso.

Conforme Emma, esposa de Jung, ele teria certeza de que Freud não gostaria de seu trabalho. Em todo caso, na carta 280, acima, vemos Freud com uma mistura de sentimentos, em parte expressos, em parte reprimidos: paternalismo, competição, generosidade exagerada, algo que – a meu ver – pode ter ferido fortemente o ego de Jung, que já andava combalido, por essa época.

***

A resposta imediata de Jung foi a seguinte carta:

Carta 282, de Jung, escrita em 14 de novembro de 1911:

“Caro Professor Freud,
Muito agradecido pela amável carta que acabo de receber. No entanto, a perspectiva fica para mim bastante obscura se também o senhor entra pela psicologia da religião [Freud começara a escrever os artigos que, depois, formariam “Totem e Tabú”]. O senhor é um rival perigoso — se é que temos que falar em rivalidade. Ainda assim, penso que tem que ser desta maneira, porque um desenvolvimento natural não pode ser detido, nem ninguém deve tentar detê-lo. Nossas diferenças pessoais tornarão o nosso trabalho diferente. O senhor extrai as pedras preciosas, mas eu possuo o “degree of extensión”. Como o senhor sabe, o meu procedimento é sempre do exterior para o interior e da totalidade para a parte. Consideraria por demais des­concertante deixar grandes áreas do conhecimento humano permane­cerem negligenciadas. E por causa da diferença de nossos métodos de trabalho devemos, sem dúvida, encontrarmo-nos de vez em quando, em lugares inesperados. Naturalmente o senhor estará à minha frente em certos aspectos, mas isso não importa muito, uma vez que o senhor já antecipou a maior parte. Só no começo é difícil acostumar-se a essa idéia. Depois, chega-se a aceitá-la. Estou trabalhando diligentemente na minha segunda parte, mas já não posso incluí-la no próximo Jahrbuch.”

[…] “Na segunda parte do trabalho aprofundei-me numa questão fundamental da teoria da libido. Aquela passagem na análise de Schreber em que o senhor aborda o problema da libido (perda da libido = perda da realidade) é um dos pontos onde se cruzam os nossos caminhos mentais. Do meu ponto de vista, o conceito de libido, tal como foi estabelecido nos Três ensaios, precisa ser suple­mentado pelo fator genético para torná-lo aplicável à Dementia praecox.”

E Jung despede-se assim: “Com esta nota de imprecação, à qual mal posso acrescentar um “sinceramente”, despeço-me do senhor. Cordiais saudações, Jung”.

***

Uma nota de confusão à mais é data pela participação de Emma Jung na história. Após o congresso de Weimar, Emma aventurou-se a escrever a Freud, mostrando-se preocupada com o marido, e desejosa de entender a posição de Freud no tocante ao livro recém publicado do marido.

Numa segunda carta, Emma expande-se de maneira bastante inapropriada. Arrisca-se a fazer uma análise dos filhos de Freud, perguntando se eles não estariam doentes por resistências psicológicas – que justo Freud não teria visto…? Na terceira carta, chega a “propor” que Freud lhe confidencie alguns de seus problemas e dificuldades pessoais (!!).

As cartas de Emma vão num crescendo de disparate, e é até possível imaginar que Jung estava por trás delas – talvez, de forma inconsciente (Emma “atuando” os questionamentos do marido, por exemplo).

Outra nota interessante nesse contexto é perceber como as reclamações que Jung dirige à Bleuler – seu antigo chefe no hospital psiquiátrico – bem que poderiam estar endereçadas à Freud (isto é, projetadas). Jung menciona que Bleuler “simplesmente não quer ver as coisas do meu ponto de vista” (carta 285, de 24/11/1911), e uma série de outras reclamações, que certamente não passaram despercebidas por Freud.

Bleuler era mais velho, tinha posição de autoridade diante de Jung e suas relações não tinham acabado bem quando Jung começou a diferenciar-se dele, em direção à psicanálise (e a seu próprio caminho).

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