“Só aquele cuja lira luminosa
ecoou nas sombras
poderá um dia restaurar
seu infinito louvor.
Só aquele que comeu papoulas
com os mortos
nunca voltará a perder
aquela suave harmonia.
Mesmo que a imagem
nas águas se enevoe:
Conhece e aquieta-te,
No Mundo Duplo
todas as vozes
ganham eterna suavidade.”
(Rainer Maria Rilke, “Os sonetos a Orfeu” [1])
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Vivemos no tempo da luz. Tudo é tão claro, aqui! Em plena luz do dia, banham-se as coisas, sem sombras. Eterno e morno meio-dia da cultura, eterna luz.
Onde estão nossas sombras? Onde, dessa luz infinda, o oposto se irradia? Onde cresce a escuridão que acompanha tudo o que se levanta?
Não temos mesmo a necessidade de buscar sombras… como um passo à frente, mais veraz… como contraponto à essa época de ingênua e absoluta luz?
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Das trevas, nasce o anseio de luz
da luz, a compreensão da necessidade das trevas
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“(…) compreendi que, desde os primórdios, um desejo de luz e uma irreprimível necessidade de sair das trevas primitivas habitam a alma. Quando a noite chega, tudo adquire um toque de profunda melancolia […]. É esse o sentimento oculto que se pode detectar nos olhos dos primitivos, como também dos animais. […] É por isso que o nascer do sol adquire para os nativos um significado tão poderoso. O MOMENTO em que a luz surge é Deus […]. Dizer que o SOL é Deus equivale a confundir […], já é uma racionalização. Na verdade, uma escuridão distinta da noite paira sobre a região. É a noite psíquica primordial, a mesma hoje como há milhões de anos. A nostalgia de luz é a nostalgia de consciência”
(C.G JUNG. “Memórias, sonhos e reflexões”, pgs 307/8. 26ª impressão. Ed Nova Fronteira, 2006 – https://amzn.to/3cJKJTn)
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Nós, porém, estamos cansados de consciência.
Sofremos da nostalgia … do inconsciente!
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Notas:
[1] Essa tradução é a que consta no livro “Ao encontro da sombra”, coletânia de artigos junguianos organizados por Connie Zweig, pg 80. A tradução brasileira de Karlos Rischbieter é um pouco diferente:
“Só quem ousou tocar a lira
mesmo na escuridão
sente o quanto inspira
infinda louvação.
Só quem, com os mortos, comeu
de sua papoula marrom
nunca mais perdeu
o mais leve tom.
E quando, no espelho do lago,
a imagem se turva:
fixa a figura.
Somente no reino vago
as vozes são curvas
eternas e puras.”
(R.M. RILKE, “Os sonetos a Orfeu”, pg 31. Ed. Record, 2002)
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