Psicanálise e Poder. O Caso “Ferenczi”

Na minha formação em psicologia, cedo se armou uma divisão entre as abordagens mais “libertárias” e as mais “reacionárias”. Olhando em retrospecto, é fácil ver que, nisso, havia muito das minhas próprias questões, assim como um bom tanto de transferência. Vale dizer, a simpatia por um professor transbordava para simpatia com a teoria que ele encampava.

Essa divisão algo simplista me afastou da psicanálise por muitos anos. Por fim, tentando resolver os problemas da clínica, me vi olhando cada vez mais para o “gramado do vizinho”, e acabei dando uma chance para a psicanálise. Aqui, também, a transferência foi fundamental, pois esse meu movimento não teria se sustentado sem o encontro com uma ótima analista.

Hoje, algo afastado dessa ”microfísica do poder”, acho que vale a pena tentar identificar o que permanece válido em cada discurso – porque, como às vezes percebemos, o discurso do “outro” não é SÓ errado…

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Coloco esse ponto da minha história porque ela ilustra como é fácil cairmos numa divisão maniqueísta do mundo, onde “nós” somos os bonzinhos, e “eles” – os outros – são os mauzinhos. Parece haver algo ansiogênico na nossa relação com o “outro”. Precisamos nos identificar com um grupo, e para isso, precisamos recusar um outro. Não é fácil encontrar um ponto de trânsito entre esses dois grupos – vide nossa política atual… – mas o que seria mais necessário do que isso, para uma visão equilibrada das coisas?

Na história da psicanálise, algo semelhante ocorreu com Ferenczi. Ele foi um psicanalista muito criativo, e sempre próximo à Freud. No final da vida, entretanto, sua prática clínica e criatividade começaram a afastá-lo do “mainstream” psicanalítico. Como esse mainstream reagiu? Do mesmo modo maniqueísta e infantil que eu: excluíndo as contribuições de Ferenczi por mais de sessenta anos!!

Hoje, Ferenczi vem sendo recuperado, e reconhecido como um dos mais importantes psicanalistas da primeira geração. Suas pesquisas trazem para o centro do debate a importância das dissimetrias de poder nas relações entre adultos e crianças, e também do papel do ambiente, da mãe, como agente estruturante fundamental no desenvolvimento infantil, bem como no enfrentamento dos traumas.

Ferenczi chamava a atenção para as vítimas, para aqueles despossuídos de poder. Isso pareceu tão ‘desestruturante’ para a psicanálise oficial, que ela rapidamente taxou seus estudos de “alucinações”, reduzindo-os à mera expressão de doença mental.

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Vemos aqui como o “outro” pode ser ansiogênico mesmo para esses senhores psicanalistas tão centrados e seguros de si (#SQN). E aqui retomo aqueles meus inícios, onde me distanciei da psicanálise em favor da esquizoanálise. Pois o que dizia essa última? Chamava a atenção, justamente, para o quanto a clínica tradicional impedia uma escuta real do paciente, através da implantação de uma “máquina interpretativa” que torcia seu discurso na direção daquilo que Freud havia estruturado.

Freud “reconduz tudo ao pai-mãe”, como diz Deleuze [1]. Perdem-se, assim, as dissimetrias de poder nessas relações, assim como o papel invisível, mas fundamental, da mãe enquanto ambiente (não enquanto objeto). Essa crítica foi feita reiteradamente aos psicanalistas, inclusive desde dentro [2]. Muitas vezes, no entanto, isso foi acolhido apenas para inverter os papéis: se então vamos olhar para a política, então podemos jogar fora a importância dos afetos, do amor, da dependência, etc.

Obviamente, isso não muda nada. Continuamos maniqueístas, com uma simplicidade que não corresponde ao real, quando todo o mal está do lado do “outro”. Porque é tão difícil reconhecer o mal que habita aqui, dentro de nós?

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Ferenczi nos oferecia uma resposta, quando mostrava que o “outro” não é apenas objeto da minha pulsão, mas muito mais e fundamentalmente o meio ou contexto que a pulsão precisa para funcionar [3]. Ferenczi reconheceu o papel central do outro como “ambiente”, numa época em que isso quase não fazia sentido, em psicanálise.

Como argumentei em outro lugar, temos aí um primeiro modelo para entender como é possível que ambos os processos – o amor e o poder – sejam necessários para o amadurecimento emocional. Vale dizer, Ferenczi nos dá os elementos para pensarmos as relações de dominação e dependência não apenas do ponto de vista binário / maniqueísta, mas incluindo aí o aspecto produtivo / facilitador que essas relações podem ter.

Ferenczi nos permite sair da dualidade simplista, da oposição excludente, apontando para uma de suas raízes, bem ao estilo da psicanálise tradicional: a relação de dependência absoluta, na infância. Ao fazer isso, porém, ele vai além, pois fica claro, como Winnicott mostrará mais adiante, que uma relação sadia e independente se fundamenta numa relação de dependência e suporte confiáveis. Inversamente, podemos concluir, uma relação de desconfiança com o outro sugere uma ausência ou insuficiência dessa relação.

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Nesse nível, portanto, “amor e poder” coinidem. No infantil, desenvolvimento (clínica) e política se justapõe. É mais ou menos o que conclui Beatriz Mizrahi, por outros caminhos, num livro fantástico [4] sobre as relações entre a teoria do desenvolvimento, em Winnicott, e o biopoder em Foucault.

Nesse livro, a autora contrapõe uma certa leitura da psicanálise, que caracteriza nosso tempo por um declínio da função paterna (o que justificaria leituras mais autoritárias e castradoras na clínica), com a percepção de que vivemos uma crise dos processos de sustentação ambiental básicos. Ou seja, ao invés de mais castração, precisaríamos é de mais sustentação! Justamente o oposto da primeira leitura.

O próprio fato dessa leitura ‘castradora’ permanecer “mainstream” sugere quão difíceis permanecem nossas relações com o “outro”. Nem tudo pode ser recusado aí, é verdade. É bastante claro que Freud representou um avanço em relação à escuta da doença mental em seu tempo. Precisamos, porém, seguir avançando, sem perder o que foi conquistado. E é por isso, creio, que Ferenczi voltou a fazer sentido, para nós.

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Notas:

[1] G. DELEUZE: “Crítica e Clínica”, parte 9, “O que as crianças dizem”, pg 73. Ed 34, 1997. Link do livro na Amazon: https://amzn.to/3q6N1z0

[2] ADLER derivou daí toda uma outra psicanálise, por exemplo.

[3] Noção próxima do conceito de “mapa”, no contexto de uma cartografia. Ver citação acima.

[4] BEATRIZ G. MIZRAHI: “A vida criativa em Winnicott”. Ed Garamond, 2010. Link do livro na Amazon: https://amzn.to/3APQ9nI

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