Freud, Jung, Lacan: psicanálise e sonho

Nos últimos dias venho tentando diferenciar Freud de Jung de forma simples, a pedido de um amigo. Não consigo. Parecem (me?) faltar ferramentas conceituais para tanto. Mas algumas abordagens são possíveis.

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Jung é o representante da cultura. Nas cartas trocadas com Freud, isso aparece algumas vezes: Jung trabalha sempre do todo para a parte; Freud, vai da parte ao todo. Com isso, Freud é necessariamente mais claro e mais científico – mas mais fragmentado, menos completo. Jung é necessariamente mais abrangente, mas menos claro e científico.

Jung descobre e se deixa inundar pelo mito, pela sabedoria de milênios. Busca fundamentar a importância desse “solo narrativo” para todo indivíduo. Jung nos enraíza novamente na trama de nossa história cultural: os cristãos, os alquimistas, os cientistas, são todos solos culturais comuns, que nos compõe.

Freud defende uma espécie de “história mínima”, familiar; a história de nossa relação com nossos pais, ou com nossa biologia. Essa história ainda nos liga, ainda nos permite pertencer a um grupo, mas é uma história no limite do individual com o grupal.

Fazendo uma analogia, é como se cada indivíduo, em Freud, fosse uma planta de vaso, enquanto em Jung vemos plantas brotando ao ar livre. Freud trás cada planta para analisar microscopicamente em seu laboratório, já que ela estão em vasos… Jung nos convida a sair campo afora, e observar as plantas em seu ambiente natural.

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A diferença entre ambos fala de uma questão maior, que é a questão da cultura. Muitos autores denunciam a perda das grandes referências como característica central da modernidade. Penso que Freud e Jung, cada qual à seu modo, ofereceram respostas pra isso.

Pois os dois autores mostram a importância dessa referência ao “outro” como fator estruturante. O “outro” (ou o ambiente) como solo maior cultural, simbólico ou biológico, de onde “brotamos”, [1]. Em Freud, isso não está no centro de seu edifício teórico, mas está lá, tanto que Lacan fará um “retorno à Freud” grandemente baseado nisso.

Talvez exista aí uma outra questão ainda. Isto é, penso se não haveria uma antinomia entre nosso modo de fazer ciência – buscando a diferenciação, a separação, das partes em relação ao todo – e aquilo que a psicanálise descobriu, ou seja, que é impossível compreender o humano dissociando-o de seu ambiente.

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Essa é uma questão para a mentalidade científica de nosso tempo [2], e tanto Freud quanto Jung, como disse, parecem ter respondido à isso apontando para a ligação (sonhada, narrada) do sujeito com o outro, com o ambiente. Há nisso um traço de união, mais do que uma diferença, e é questão de gosto, penso eu, entender que os autores são “inconciliáveis” ou “complementares”.

Certamente há diferenças, mas elas se apequenam quando comparamos a direção que ambos apontam e aquilo que é característico de nossa cultura, ou seja, a recusa inflexível do sonhar. Na bela fala abaixo, o psicanalista Christian Dunker aborda justamente a importância do sonhar para a psicanálise, entendida enquanto ética trágica, mais do que como “ciência”. Chamo a atenção para como essa fala tanto poderia ser lacaniana, quanto freudiana ou mesmo junguiana.

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Notas:

[1] Jung não deixa de se aproximar de Lacan, ao ressaltar a importância do mito e do símbolo na estruturação do sujeito. Lacan talvez se diferencie de Jung apenas por valorizar a linguagem enquanto linguagem, isto é, para além daquilo que a língua “diz”. Ou seja, na sua indefinição mesma. A noção de “arquétipo” talvez seja a contraparte estrutural, em Jung, correspondente ao mesmo aspecto no “significante” de Lacan.

[2] Penso aqui nos exemplos que Fritjof Capra apresenta em seu livro “O ponto de mutação”, dedicado justamente a apresentar as novas descobertas da física que põe em xeque o modelo “separacionista”, de especialização, dos conhecimentos, em favor de um modelo sistêmico ou complexo, que abarque a totalidade aonde se inserem os fenômenos.

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