Antes da separação, Freud e Jung chegaram a trocar cartas sobre o significado da fantasia de incesto para a cultura.
Achei interessante registrar suas posições aqui, quando não seja para deixar claras as diferenças nas concepções de ambos.
Os trechos que transcrevi, bem como a numeração das cartas, baseiam-se no livro “Freud/Jung: Correspondência completa”. Organizada por WILLIAM McGUIRE, na tradução brasileira editada pela Imago Editora Ltda. Sublinhei e adicionei comentários aos trechos que julguei importantes.
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Carta 312, de Jung, de 27/04/1912:
“Como o senhor, estou absorvido pelo problema do incesto e cheguei a conclusões que mostram primariamente o incesto como um problema de fantasia. Originariamente, a moralidade era apenas uma cerimônia de reparação, uma proibição substitutiva, de forma que a proibição étnica do incesto pode não significar absolutamente incesto biológico, mas simplesmente a utilização de material incestuoso infantil na construção das primeiras proibições. (Não sei se estou-me expressando claramente!) Se significasse incesto biológico, então o incesto pai-filha teria caído em proibição muito mais prontamente do que aquele entre genro e sogra. O espantoso papel da mãe na mitologia tem um significado que excede em muito o problema do incesto biológico — um significado que corresponde à pura fantasia.”
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Carta 314, de Freud, escrita em 14 de maio de 1912
Contexto: Jung explicita sua concepção da noção de incesto, e sua importância para a história da cultura, fundando sua análise no matriarcado – diferentemente do que Freud já apresentara, nos primeiros artigos do que viria a ser “Totem e Tabu”. Freud responde com três apontamentos:
“Quanto aos seus argumentos, tenho três observações a fazer; não são refutações, devem ser tomadas simplesmente como expressões de dúvida.
1) Muitos autores consideram um estado primordial de promiscuidade como altamente improvável. Eu próprio, com toda a modéstia, sou favorável a uma hipótese diferente em relação ao período primordial — a de Darwin.
2) O direito materno não deve ser confundido com a ginecocracia [matriarcado]. Há pouco a dizer quanto a esta. O direito materno é perfeitamente compatível com a degradação poligâmica da mulher.
3) Parece provável que tenha havido filhos do pai em todas as épocas. O pai é alguém que possui sexualmente a mãe (e os filhos, como propriedade). O fato de ter sido engendrado por um pai tem,
afinal de contas, significado psicológico para uma criança.”
(Penso que Freud confunde a situação presente, que ele encontra na clínica, e a situação maior, história, do humano. A época de Freud, como a nossa ainda, era grandemente patriarcal, mas isso não se verifica, com a mesma intensidade, em outras culturas. A afirmação de que “o pai possui sexualmente a mãe” faz todo o sentido do ponto de vista de Freud, misturando sexo e poder, mas não é antropologicamente verdadeira. No mínimo, é discutível. A própria noção de “pai” assume conotações muito diversas das que Freud supõe em seu argumento. Jung irá integrar a visão freudiana mais adiante, articulando o pai enquanto representante da consciência e da separação, mas como movimento integrado ao desenvolvimento natural do sujeito, e não como “oposição” à mãe, como parece ser a ideia de Freud. A meu ver, a posteridade psicanalítica se aproximou da noção junguiana, nesse ponto)
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Carta 15, de Jung, de 17/05/1912:
“No tocante à questão do incesto, receio causar uma impressão paradoxal ao senhor. Aventuro-me apenas a lançar uma conjectura audaciosa na discussão: a grande quantidade de ansiedade flutuante
no homem primitivo, que conduziu à criação de cerimônias tabu no sentido mais amplo (totem, etc.), produziu também, entre outras coisas, o tabu do incesto (ou antes: o tabu do pai e da mãe). O tabu
do incesto não corresponde mais ao valor específico do incesto “sensu strictiori” do que a sacralidade do totem corresponde ao seu valor biológico. Sob esse ponto de vista, deve-se dizer que o incesto é
proibido não porque é desejado, mas porque a ansiedade flutuante reativa regressivamente o material infantil e o transforma numa cerimônia de reparação (como se o incesto tivesse sido, ou pudesse ter
sido, desejado). Psicologicamente, a proibição do incesto não tem o significado que é preciso atribuir-lhe, se se presume a existência de um desejo de incesto particularmente intenso. O significado etiológico da proibição do incesto deve ser diretamente comparado com o assim chamado trauma sexual, que, habitualmente, deve o seu papel etiológico apenas à reativação regressiva. O trauma é aparentemente importante ou real, e assim o é a proibição ou barreira do incesto, que, do ponto de vista psicanalítico, tomou o lugar do trauma sexual. Assim como “cum grano salis” não importa se um trauma sexual realmente ocorreu ou não, ou foi uma simples fantasia, psicologicamente é secundário se existiu ou não realmente a barreira do incesto, uma vez que é, essencialmente, uma questão de desenvolvimento posterior o assim chamado problema do incesto transformar-se ou não num problema de evidente importância. Uma outra comparação: os eventuais casos de verdadeiro incesto têm tão pouca importância para as proibições étnicas de incesto quanto as manifestações ocasionais de bestialidade entre os primitivos em relação aos antigos cultos animais. Na minha opinião, a barreira do incesto não pode ser explicada pela redução à possibilidade de verdadeiro incesto, assim como
o culto animal não pode ser explicado por redução à verdadeira bestialidade. O culto animal é explicado por um desenvolvimento psicológico infinitamente longo, que é de importância primordial, e
não por tendências bestiais primitivas — estas nada mais são do que a pedreira que fornece o material para a construção do templo. Mas o templo e o seu significado nada têm a ver com a qualidade das
pedras da construção. Isso aplica-se também ao tabu do incesto, que, como instituição psicológica especial, tem um significado muito maior — e diferente — do que a prevenção do incesto, muito embora possam, de fora, parecer a mesma coisa. (O templo é branco, amarelo ou vermelho, de acordo com o material usado.) Como as pedras de um templo, o tabu do incesto é o símbolo ou veículo de um significado especial e mais amplo, que pouco tem a ver com o incesto de verdade, assim como a histeria com o trauma sexual, o culto animal com a tendência à bestialidade e o templo com a pedra (ou, melhor ainda, com a primitiva moradia de cuja forma é derivado).”
[O que Jung está dizendo aqui é que o incesto é apenas um sinal, um resíduo atual, de um processo muito maior e mais longo, concernente à separação dos filhos em relação aos pais. O incesto, ou sua proibição, na atualidade, apenas simboliza esse processo muito mais longo, através do qual a humanidade teria consolidado a necessidade de separação entre pais e filhos, em especial em relação à mãe. A imagem atual do incesto não corresponde ao processo total, mas apenas aponta pra ele. O fundamental é que a fusão com a mãe existiu, num tempo pré-subjetivo, e depois foi recusada – momento fundamental para a constituição do “Eu”. Para Jung, em resumo, o incesto não CAUSA a separação da mãe, mas apenas “resume” um processo filogenético muito mais amplo, o qual, esse sim, consolidou a separação materna.
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Carta 316, de Freud, a 23/05/1912:
“Na questão da libido, finalmente, vejo a que ponto a sua concepção difere da minha. (Estou-me referindo, é claro, ao incesto, mas pensando nas suas anunciadas modificações no conceito de libido.)
O que não consigo ainda compreender é por que razão o senhor abandonou a concepção mais antiga, e que outra origem e motivação a proibição do incesto pode ter. Naturalmente, não espero que o
senhor me explique essa difícil matéria mais plenamente por carta; serei paciente até que o senhor publique as suas idéias sobre o tema.
Valorizo a sua carta pela advertência que contém e pela lembrança do meu primeiro grande erro, quando confundi fantasias com realidades. Serei cuidadoso e conservarei os olhos abertos a cada passo.
Se agora, porém, deixarmos de lado a razão e sintonizarmos o aparelho com o prazer, confesso ter uma forte antipatia pela sua inovação. Essa antipatia tem dois motivos. Primeiro, o caráter regressivo da inovação. Creio que temos sustentado, até agora, que a ansiedade se origina na proibição do incesto; agora o senhor afirma, pelo contrário, que a proibição do incesto origina-se na ansiedade, o que é muito semelhante ao que foi dito antes da era da psicanálise.
Em segundo lugar, por causa da semelhança desastrosa com um teorema de Adler, embora, naturalmente, eu não condene todas as invenções de Adler. Disse ele: a libido do incesto é “arranjada” ; isto é, o neurótico não tem absolutamente desejo por sua mãe, mas quer munir-se de um motivo para afugentar a si próprio da libido; finge para si mesmo, portanto, que sua libido é tão monstruosa que
não poupa nem mesmo sua mãe. Isso ainda hoje me surpreende pela fantasia, baseada numa total incompreensão do inconsciente. Pelo que o senhor sugere, não tenho dúvidas de que a sua derivação da libido incestuosa será diferente. Existe, porém, uma certa semelhança.
Mas repito: eu reconheço que essas objeções são determinadas pelo princípio de prazer”.
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Carta 318, de Jung, escrita em 08/06/1912:
“Sobre a questão do incesto, pesa-me ver que poderosos afetos o senhor mobilizou na contra-ofensiva às minhas sugestões. Já que penso ter razões objetivas do meu lado, sou forçado a sustentar a minha interpretação do conceito de incesto, e não vejo saída para o dilema. Não foi por razões frívolas ou preconceitos regressivos que fui levado a essa formulação, como, espero, se tornará claro para o
senhor quando ler o minucioso e intrincado exame que faço de todo o problema, na segunda parte do meu ensaio. O paralelo com Adler é uma pílula amarga; engoli-o sem um murmúrio. Evidentemente,
é esse o meu destino. Não há nada a fazer quanto a isso, pois as minhas razões são irresistíveis. Principiei com a idéia de corroborar a antiga concepção de incesto, mas fui obrigado a ver que as coisas são diferentes do que esperava.”
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Carta 319, de Freud, a 13/06/1912:
“Sobre a questão da libido, vejamos. A natureza da modificação que o senhor fez não está clara o bastante para mim e nada sei da sua motivação. Uma vez mais bem informado, poderei certamente
desviar para a objetividade, precisamente porque estou bem cônscio da minha propensão. Mesmo que não possamos chegar a um acordo imediatamente, não há razão para supor que essa diferença científica
irá diminuir o nosso relacionamento pessoal. Lembro-me que havia diferenças mais profundas entre nós, no começo das nossas relações.”
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Infelizmente, a partir daqui, a relação manifestas se desestruturam de vez, passando ambos (Jung, especialmente) a valorizar as pequenas diferenças, os pequenos sinais de desencontro, que assumem dimensões desproporcionais. Implicitamente, os autores já estavam se distanciando deste 1909, após a América.