Winnicott e as redes sociais

Em sua teoria do desenvolvimento emocional [1], Winnicott postula que nossa relação com a realidade só se dá quando conseguimos fazer o real passar por um filtro – o filtro de nossa onipotência.

Vale dizer, toda criança, todo ser humano, precisa criar a realidade que encontra pela primeira vez. Essa criação acontece através de experiências controladas e seguras, brincando, na chamada área transicional, formada por uma mistura de objetividade e subjetividade.

Assim, o brincar nos prepara para o não-brincar; o subjetivo nos prepara para a objetividade. E é habitando esses espaços mistos, transicionais, que a criança vai adquirindo a capacidade de se relacionar com um real cada vez mais “objetivo”.

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O que Winnicott quer dizer é que nossa objetividade se assenta, no fundo, na formação de uma grossa camada de subjetividade. Ao internalizar uma relação subjetiva com a realidade – em fantasias inconscientes – criamos o contrapeso necessário para ter uma relação objetiva com o real.

Mas não há objetividade, sem subjetividade.

Ora, isso se aplica perfeitamente ao que estamos vendo hoje, no fenômeno das redes sociais.

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O espaço virtual das redes sociais é análogo ao que Winnicott chamava de espaço transicional. Ou seja, é um espaço vivido como interno e externo, ao mesmo tempo.

Tanto é assim que as pessoas em geral utilizam o espaço das redes como se fosse algo privado, algo de seu mundo interno, subjetivo. Daí a falta de educação, de limites, que tanto caracteriza as áreas de comentários, por exemplo.

Por outro lado, é óbvio que todos esses espaços são públicos. Quando eu faço um comentário depreciativo a fulano, por mais que esteja apenas expressando a “minha opinião” – meu mundo interno – isso está aparecendo para todo mundo, e faz parte, portanto, da realidade – do mundo externo.

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A grande diferença entre o mundo pré-redes sociais e o nosso mundo de hoje é que, antes, o espaço transicional era mais privado. Via de regra, era um espaço sustentado pela família, a qual, na saúde, mantinha uma continuidade, um funcionamento confiável – o qual estruturava, para a criança, os marcos onde sua onipotência subjetiva iria se dar.

O que vemos hoje é que o espaço transicional se forma “aberto” – vale dizer, sem marcos familiares, sem referências contínuas… o que leva à uma fragmentação subjetiva muito grande.

Incapazes de formar um “todo” integrado, os sujeitos de nosso tempo tornam-se fundamentalistas, isto é, defendem com unhas e dentes o pouco de mundo interno que conseguiram “enganchar” em algum pedaço de realidade – ou, o que dá no mesmo, defendem a sua percepção da realidade com fanatismo.

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O que vemos se desenvolver, em nossos dias, é uma mistura, uma falta de barreiras, entre o que é “brincar” – a fantasia inconsciente onde fazemos de conta que criamos toda realidade – e a responsabilidade que caracteriza o comportamento adulto.

De forma tipicamente winnicottiana, essa mistura se dá por uma escassez de vivências “suficientemente infantis”. Vale dizer, pela falta de espaços livres e descompromissados, onde a criança possa brincar de construir o mundo no seu ritmo. Onde possa exercer, numa palavra sua onipotência (imaginária).

A brincadeira não pode, nem deve, ser responsável. Ela é justamente o espaço da necessária liberdade – ou loucura – que necessitamos, para construir nossa sanidade. Mas a vida adulta não pode se basear num funcionamento assim. Ela demanda alguém que se responsabilize pelo que acontece. E isso só é possível quando, dentro da cada adulto, existe uma criança bem cuidada, bem atendida. Uma criança saciada, que possa existir nos pequenos intervalos que a vida adulta também permite – como na vida privada, no jogo…

Sem surpresas, o que vemos se constituir, hoje, é uma geração de adultos cuja criança interior não foi atendida, e que precisa, por isso mesmo, ser infantil o tempo todo – ou adultos que pretendem sê-lo sem sua contraparte criança, o que é o fundamento de todo fanatismo.

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Notas:

[1] Ver Elsa Oliveira Dias, “A teoria do desenvolvimento de D. W. Winnicott”

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