Há um trecho dos Upanishads, que diz:
“No começo, este mundo era apenas Alma (Atman), na forma de uma pessoa. Olhando em volta, ele não viu senão a si mesmo. Primeiro disse: “Eu sou”… Era, na verdade, grande como uma mulher e um homem estreitamente abraçados. E causou a queda (pat) daquele eu em duas partes. Surgiram daí um marido (pati) e uma esposa (patni)”. (Neumann, 1968, pg 28)
Vemos que eles comparam o estado primordial, onde a Alma era una, com um “casal”. Melhor dizendo, antes de existir dois seres, um masculino e outro feminino, existia apenas uma alma una, formada de ambos. Com a “queda”, o ser dividiu-se, e desde então temos dois seres incompletos, que buscam completar-se no encontro com o outro.
O texto tanto pode ser lido no sentido de que o casal que é possível formar hoje, feito de duas pessoas juntas, não é a mesma unidade que se tinha antes, como que a experiência de ser um verdadeiro casal no aproxima da experiência de completude primordial da alma.
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São textos de milhares de anos, mas que continuam válidos. Só podemos nos sentir completos no amor. E embora nosso amor, humano, seja uma “queda”, em relação ao amor da Alma primeira, ainda assim, é nessa direção que está o nosso melhor.
Penso que algo disso podemos sentir, através do amor real, concreto, mas também através da arte.
Vejo algo disso nas letras e na forma com que cantava Renato Russo, na Legião Urbana, por exemplo.
Como na música abaixo:
É uma música triste, claro; fala sobre uma perda. Mas o que ressoa, no fundo, é o encontro, a nostalgia, o amor, a felicidade de ter estado junto.
Como é compreensível, quando mais valiosa a presença, mais sentida será, também, a ausência.
A paixão com que Renato canta me faz pensar que ele encontrou, na arte, uma forma daquele encontro, daquele “casal”, que remete à unidade da alma.
No caso do artista, o encontro se dá entre ele e algo dele mesmo, algo não racional nem egóico. O artista forma, com sua arte, uma espécie de “casal interno”.
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Nessa outra canção, Renato fala da presença e do amor:
Aqui, a letra fala explicitamente da incompletude do ser, quando não temos esse “outro” – que pode estar na arte, mas talvez precise de suportes reais, numa outra pessoa.
De qualquer maneira, sinto que a voz de Renato comunica mais do que suas palavras. O tom, a paixão, a entrega, a completude que ele expressa ao cantar – isso, comunica a “alma” (Atman).
Num post antigo do blog, foi isso que escutei em outra cantora, sem saber ainda nomear direito o que encontrava:
Difícil dizer que, quando encontramos e principalmente sentimos esse amor, não estejamos numa dimensão religiosa. Para além das crenças ou dogmas, essa vivência de unidade conosco transborda em um olhar amoroso para com tudo. Vemos o mundo com um olhar apaixonado, porque… bem, estamos apaixonados.
Nesse momento, nosso “ser” se transforma. Nós somos o amor. Todas as máscaras e fragmentos de identidade ficam pra trás. Importam pouco. O que importa, realmente, agora, é ser. Apenas ser.
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Notas:
Neumann, E. (1968). “História da origem da consciência”. São Paulo: Cultrix