Dando sequência aos nossos posts sobre a leitura que Foucault faz da psicanálise em seu último período produtivo, vamos tentar abordar hoje como a psicanálise se situa, dentro dos grandes quadros esboçados por Foucaul.
Já começamos a trabalhar esse ponto na parte “2” dessa série, e hoje finalizaremos essa ideia.
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Se tentamos definir o que é a verdade, uma das direções possíveis será dizer que “verdade” é aquilo que é “em si e para si”, isto é, independentemente do sujeito que a interroga.
Isso nos coloca claramente numa relação entre “verdade” e “sujeito”. No caso, uma relação de exclusão. Verdade é quando a presença de um sujeito não interfere no saber em questão.
Essa é uma ideia quase “natural” de verdade. Ela não se fundamenta em uma pesquisa histórica mais séria, mas ela funciona no dia a dia. Quem nunca viveu situações onde percebemos que há uma diferença entre aquilo que uma pessoa pensa e aquilo que a realidade “é”? Basta pensar numa discussão de casal, onde cada um vê as coisas de formas diferentes. Nos metemos em situações complicadas toda vez que aquilo que percebemos não é compartilhado pelo outro. Também por isso essa noção ‘natural’ de verdade nos interessa: ela nos acalma, nos legitima. Nos dá segurança.
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Paradoxalmente, isso que experimentamos quando compartilhamos “da” verdade com o outro trás o subjetivo à tona novamente. Pois recoloca a questão: “isso que se apresenta como nossa verdade… é uma verdade onde o sujeito está excluído, ou simplesmente não vemos o sujeito, nisso, porque nos falta um outro ponto de vista, a partir do qual olhar essa relação?”
Daí a resposta de Nietzsche, de Nicolau de Cusa, de Jung e tantos outros, relativa à multiplicidade de pontos de vista: quanto mais pontos de vista tivermos em relação à uma coisa, mais “verdade” teremos sobre ela, dizem eles. Ou seja, isso vai no extremo oposto daquela primeira definição, ‘natural’, de verdade.
Mas enfim, esse não é o nosso ponto. Queria apenas mostrar como é complexa o ‘lugar teórico’ do entrecruzamento das noções de “verdade” e “sujeito”, e especialmente como é difícil separar essas noções.
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Nosso modelo de ciência já vem percebendo a algum tempo que não é possível separar o observador do fato observado. É o que o “princípio da incerteza”, em física postula: o fato de observar um fenômeno altera esse fenômeno, de maneira que nunca temos acesso ao fenômeno “em si”, mas sempre e somente ao fenômeno “para nós”‘, observadores.
No entanto, para alguns setores das ciências humanas, ainda se exige uma busca da verdade naqueles termos antigos, onde supostamente o sujeito está excluído. Justo em ciências humanas…
E esse é o sentido paradoxal da psicanálise, conforme quis apresentar nos outros posts: ela não pode prescindir da noção de sujeito, e, mais ainda: da experiência concreta que compõe o sujeito, nos seus mil e um enraizamentos na história de vida, nas contingências e acasos que compõe a soma da subjetividade de cada um.
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Isso aparece claramente, em alguns conceitos. O exemplo mais claro talvez seja o de “espaço transicional”, em Winnicott. Para esse autor, todos nós experimentamos, em um momento do desenvolvimento emocional, uma fase onde vivemos as coisas ao mesmo tempo do ponto de vista objetivo e subjetivo.
Daí o “espaço transicional” ser o espaço de transição, o espaço onde se daria a passagem de uma experiência majoritariamente subjetiva, na infância, em direção à uma experiência que tende a dar cada vez mais espaço para a objetividade.
Assim, por exemplo, quando a criança brinca que seu boneco é “o rei de um castelo”, essa parte é subjetiva, obviamente, mas o boneco em si, enquanto suporte da fantasia, é objetivo. O boneco existe, e está ali, sendo manipulado, como parte de um jogo tanto objetivo quanto subjetivo.
O conceito, em si mesmo, pode ter pretensão à cientificidade. Mas o conceito aponta justamente para o anti-científico que está no cerne do humano, pois é claro que nada pode ser, “cientificamente” falando, objetivo e subjetivo ao mesmo tempo. Nós apenas podemos postular que isso acontece, como uma lei geral – e, nesse sentido, objetiva -, mas, enquanto submetidos à essa lei, estamos completamente no lado do não-científico, do paradoxal.
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A importância desse conceito, então, no contexto que estamos estudando, é que ele aponta para a necessidade de termos uma relação subjetiva com a realidade, como condição para acessarmos uma relação objetiva, num segundo tempo.
Mais ainda, esse conceito inverte a fundação de nossa relação com a realidade, propondo que só acessamos o ‘verdadeiro’ a partir de uma tentativa de sustentar o falso que nos é necessário. Vale dizer, aquela relação subjetiva com o mundo é que é fundamental. E é para manter essa relação, que nos lançamos à objetividade. NÃO para ‘descobrir o verdadeiro’, mas, antes, para que o real objetivo não nos atrapalhe em nossa relação subjetiva.
“O real é uma ofensa”, diz Winnicott, sintetizando tudo isso. Em vários de seus exemplos clínicos vemos justamente que a alucinação, a criatividade, a relação subjetiva, são primeiros, em relação à objetividade. Inversamente, uma relação puramente objetiva é entendida por Winnicott como doença.
(Qual é esse “falso” que nos é necessário? Há toda uma lista disso, pelo menos a partir de Nietzsche, mas a grande falsidade que estaria aqui em questão, penso eu, é a falsidade de que o mundo tem um sentido. Nós realmente não podemos ter certeza disso, objetivamente falando, até concluir toda a jornada do conhecimento, e saber sobre o mundo de forma absoluta. Ora, ao mesmo tempo, nós necessitamos dessa premissa agora, para simplesmente viver. É necessário postular um sentido, para o mundo e para nós mesmos, dentro desse mundo. Mas essa postulação é puramente fictícia, subjetiva. Segundo Winnicott, aliás, essa questão nem chega a ser colocada, na saúde, porque nós simplesmente nos sentimos à vontade dentro dessa ficção. É a doença nos faz ‘pensar’ nisso, uma afirmação que tanto poderia ser de Nietzsche quanto de Winnicott).
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Voltando à Foucault, entendemos que essa posição de Winnicott responde à necessidade, postulada pelo pensador francês, de uma crítica do saber psicanalítico que escape ao “psicologismo” (ver parte 1 dessa série).
Pois o que Winnicott fundamenta, aqui, é que toda verdade, mesmo a psicanalítica, está sempre numa relação indireta com a subjetividade. No fundo, é a relação subjetiva quem orienta e organiza nossa relação com o mundo objetivo.
É ingênuo pretender fundamentar uma “ciência” psicológica em termos absolutos, simplesmente porque não temos um ponto de Arquimedes fora da subjetividade aonde basear nossa observação. E a subjetividade almeja o subjetivo; precisa do falso. A alma quer alma, como diria Jung.
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Concluíndo, isso definiria o lugar da psicanálise como aquele do paradoxo, um lugar onde, ao mesmo tempo, se enuncia verdades com pretensão científica, objetiva, e se vive essas verdades do ponto de vista subjetivo.
É mais ou menos como aquele pensador antigo que, sendo de Creta, disse que “todos os cretenses mentem”. Ora, se isso fosse verdade, então ele estaria mentindo; mas, se ele está mentindo, então sua afirmação é verdadeira…
O resultado, fora do debate da lógica, é que nossas afirmações podem ser verdadeiras e falsas ao mesmo tempo, simplesmente porque se referem à âmbitos diferentes de nossa experiência. Vale dizer: não podemos subsumir nossa subjetividade, nosso mundo interno, ao mundo externo. É preciso manter a subjetividade como uma área da existência por seu próprio valor. E foi isso que foi perdido, com o avanço “des-subjetivista” da ciência. Mas tudo indica que isso chegou a um limite, e que o subjetivo projeta um retorno para o nosso tempo, às custas do científico. Mas essa é outra história…
Que profundo isso! Refletindo aqui…🤔
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Oi, Evelyn, obrigado pelo comentário! Sim, é profundo e complexo… e um tema que me encanta.
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