Nos tempos de Freud, a relação dos filhos com os pais encaixava facilmente numa estrutura de castração: os pais, como figuras de autoridade, “castravam” os filhos, isto é, definiam limites, proibições, zonas da experiência que estavam vetadas, etc.
Isso ainda existe, é claro, mas penso que hoje o contrário também ocorre: vejo muitos filhos servido de suporte para o ideal dos pais, e, nesse sentido, atuando como “castradores”.
Isso é algo que nem sempre é compreendido, na teoria freudiana: os pais, como figuras de autoridade, não desempenham sua função por serem “pais”, mas por uma estrutura mais ampla, que conecta prováveis modelos de comportamento biológicos à cultura propriamente dita.
Numa palavra, os pais atuam como suportes reais para uma função simbólica, estrutural.
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Isso é muito parecido com o que Jung propôs, com a ideia dos “arquétipos”. A meu ver, tanto Freud quanto Jung trabalham próximos ao que se convencionou chamar de “estruturalismo”, porque, para ambos, a estrutura da relação é mais importante que seu suporte real.
No nosso exemplo, o fundamental é que exista um ideal atuando como “castrador” diante do desejo ilimitado – ou “sem estrutura”, digamos assim. O ideal – a castração – estrutura o desejo, daí sua importância. Como dizia Lacan, a questão é a “lei”, a “função paterna”, e não o pai, concretamente, ou o Judiciário, etc. Tanto que a “função paterna” pode ser exercida pela mãe, por um irmão, por um agente do estado…
Esse ideal circula na cultura, e pode assumir as mais diversas formas. A meu ver, hoje, é a própria ideia de “felicidade” que atua como ideal castrador, e essa ideia se enraíza em tudo quanto é canto, inclusive nos “filhos”.
Assim, vivemos a situação paradoxal, um tanto “anti-edípica”, onde são os filhos que ‘castram’ os pais.
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Onde isso aparece, concretamente? Ali onde os pais abdicam de seu próprio prazer, crescimento ou experiência, em prol do crescimento, prazer ou experiência dos filhos.
É claro que isso existe em muitas sociedades, mas a legitimação social – o simbólico – disso é que muda. Antigamente, por exemplo, eu abdicava de algo, no contexto familiar, para ser um bom pai, para ser um adulto responsável – e não porque “a felicidade de meu filho é o mais importante”.
Hoje isso mudou, e os mesmos pais que criticarão qualquer intervenção social em sua liberdade, na forma de viver e construir a família, darão aos filhos todas as possibilidades de intervenção, sem nem perceberem.
Creio que essa inversão é mais uma expressão da imensa “transvaloração” dos valores que nossa época tem ensaiado, como dizia Nietzsche. Conscientes ou não, estamos vivendo uma inversão de tudo o que era “valor” para nossos pais, e me questiono se sabemos aonde isso vai nos levar.
A se acreditar em Jung, a história acontece em termos de gigantescas “compensações”. Após gerações de poder dos pais, agora viveríamos a época do “poder dos filhos”. Parece justo. E confuso.
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Enfim, talvez isso não mude muita coisa. Assim como os pais, como suporte do poder, raramente pensaram sua atuação, em termos mais amplos – ou seja, a maioria dos pais nunca foi consciente da importância do que faziam -, também as crianças não terão “consciência” do papel que exercem, como suportes da “castração” dos pais. Seguiremos todos desempenhando um papel social que não compreendemos.
É verdade que isso tem um preço, e todo suporte de autoridade traz consigo uma demanda de responsabilização. No caso das crianças como “autoridades”, isso cria uma situação trágica.
Pois a biologia coloca a criança naturalmente num lugar de pouca responsabilidade. São os pais, os mais velhos, que, também naturalmente, assumem as posições de autoridade, e as responsabilidades – e a culpa – correspondentes.
Quando invertemos, socialmente, essa equação, colocamos as crianças em posição de autoridade, e a responsabilidade e a culpa relacionadas terão que ser assumidas mais tarde. Mas por quem?
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Pois essa é uma lei estrutural: alguém tem que assumir a culpa. Tradicionalmente, essa culpa foi assumida pelos pais, ou pelos deuses – ou até pelo diabo… nenhum dos quais está disponível, para nós, hoje.
Cria-se então um vácuo, uma imensa necessidade de “bodes expiatórios”. Pois essa culpa circula o tecido social, e pode se vincular a qualquer um.
O que talvez explique parte de nossa paranóia, o medo irracional que temos de estarmos “errados”, a busca incessante e ansiosa pelos “culpados” – da vida, da morte, da pobreza… De tudo.
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Tempos complicados, esses…!! A própria vida é colocada em questão, quando não há um lugar seguro e definido para onde escoar a morte –