Masculino e Feminino como modos de “SER”

Hoje, a discussão em torno dos termos “masculino” e “feminino” está carregada de tensão. Parece não ser possível pensar sobre isso sem enfrentar gritaria, seja de um lado, seja de outro. Mas a gritaria sempre indica que algo importante foi abordado. E, realmente, penso que é assim.

Então, tentarei falar mais uma vez do assunto.

***

Trato aqui de masculino e feminino como modos de “SER”. Ou seja, estou falando do aspecto psicológico da questão. E a primeira coisa a fazer é diferenciar o que é um direcionamento natural – uma tendência – do que é um “destino”.

Pois masculino e feminino me parecem tendências, isso é, facilitações naturais, biológicas mesmo, a agir de um modo ou de outro.

Como toda tendência natural, ela é grandemente modificada pela cultura. Então, apesar de haver um direcionamento biológico para um lado ou para outro, isso não significa destino.

Essa relação mais ou menos aberta entre biologia e cultura, no nível em que nós a vivemos, é algo muito humano, inclusive. Algo que nos caracteriza.

***

O segundo ponto a abordar é que, do ponto de vista psicológico, todos somos bissexuais. Isso quer dizer que todos nós temos psicologicamente os dois sexos.

Vale dizer, temos o direcionamento biológico para as duas formas de “ser”. Esse direcionamento apenas varia em intensidade, de pessoa pra pessoa. Alguns terão mais tendência a um comportamento masculino, outros ao feminino.

Mas o fundamental é perceber que temos os dois aspectos em nós, e que, ao menos segundo minha experiência, esses aspectos parecem aceitar algum grau de desenvolvimento.

Ou seja, mais uma vez, não há nada de “destino” aqui, apenas tendências que, como muitas outras, admitem evolução, adaptação, mas também repressão e transformação, tudo em função da cultura.

(Saliento aqui que estou falando em “algum grau” de desenvolvimento. Não estou falando de mudanças absolutas).

***

Assim preparado o terreno, eu definiria “masculino” e “feminino” a partir da experiência básica envolvendo os sexos, que é a gravidez. “Feminino” seria, então, essa presença da mãe cuidando do bebê com uma entrega muito grande. E “Masculino” seria a posição do homem, naturalmente mais afastado da criança.

Tudo isso é muito claro já na gravidez física. A mãe “cede” um espaço dentro de seu próprio corpo, para o filho, e tem, assim, com ele, uma relação de proximidade que nenhum homem conseguirá ter (ao menos do mesmo modo).

Em termos psicológicos, essa mesma matriz de comportamento definiria o “feminino” (que, lembrando, existe no homem também). A mulher, pela própria biologia de seu corpo, seria convidada pela natureza a desenvolver esse aspecto. Mas não há nenhum destino aí, nem tampouco garantias. Conhecemos mulheres que não querem viver essa experiência, ou que são mães terríveis, assim como pais que são muito “maternais”.

***

Winnicott propõe, para essa relação muito identificada entre a mãe e a criança, o conceito de “preocupação materna primária”. Ele nos diz que a identificação da mãe com a criança é tão grande que as fronteiras entre eles são quase abolidas.

Penso então que “identificação” é um bom termo para caracterizar o “feminino”. Nisso se incluiriam outros comportamentos, todos facilmente associados à “cena primária” da gravidez, como a empatia, a preocupação com o outro, a capacidade de se doar, a centralidade do amor, e também do sentimento, como experiência norteadora, a espontaneidade, a importância da experiência imediata, etc.

O homem, também a partir da “cena primária” da gravidez, seria naturalmente mais DES-identificado com a criança. Penso que “diferenciação” define bem o papel do pai, nesse contexto. O pai é sempre um terceiro, que vive com a criança uma relação diferente, mais distante, do que aquela vivida com a mãe. Por outra perspectiva, ele também está diferido, não-incluído, na relação muito íntima e identificada entre mãe e bebê. Isso tem seu lado bom, pois alguém precisa dar conta das demandas do real, enquanto o desenvolvimento acontece.

Assim, o masculino seria definido pela diferenciação, e os comportamentos daí derivados seriam a consideração fria das coisas, o peso da realidade maior, em comparação com o sentimento, o pensamento como experiência norteadora, a preocupação com regras e estruturas superpostas às experiencias, ou seja, o contrário da espontaneidade, a busca pelo espiritual na palavra, em oposição à experiência direta do religioso, etc.

***

Após dizer tudo isso, é imperioso lembrar que ambos os comportamentos existem em todo ser humano, e que não há garantias. Alguém que se identifica como mulher pode viver uma identificação intensa com uma criança, mas mesmo assim ter um comportamento sexual masculino, etc.

Para repetir ainda uma vez, não há destino, nem caminhos pré-definidos de forma absoluta, nessas questões.

É preciso entender também que existe uma história cultural do uso dos termos masculino e feminino. Essa história conta, e certamente tem um peso na maneira como nós nos relacionamos hoje, com tudo isso.

Por outro lado, o fato de existir uma história não significa que “apenas” a história exista. Isto é, que não existam outras determinações reais, para as diferenças de comportamento sexual.

***

Nesse ponto, os críticos das diferenciações de gênero me parecer ir longe demais, por fazer crer que o único aspecto que conta é a história, as relações de poder, ou, numa palavra, o lado cultural da questão.

É bem verdade que esse aspecto é fundamental. Mas, como vimos, há bons motivos para reconhecer que existam, sim, disposições biológicas, atuando como tendências.

Mesmo que culturalmente não sigamos mais tão diretamente essas tendências, penso que é sábio reconhecer com clareza o caminho natural, para podermos nos diferenciar dele sem perder nossas raízes. Ao menos na medida em que elas ainda se justificam, como penso que é o caso.

***

Talvez o ponto mais candente por trás disso tudo seja a questão do valor de cada um desses comportamentos. Parece que parte da crítica procura desfazer a diferença entre os sexos, como se isso “resolvesse”, também, a diferença de valor, de poder, entre eles.

Penso que essa direção é equivocada. Vai-se longe demais, ao pretender que apenas o aspecto cultural conta, e que nada do que a biologia prescreveu mantém relevância.

Por outro lado, é ir longe demais também, pretender que apenas sigamos a natureza, como se não houvesse cultura.

Mas, para tratar dessas questões, vou precisar retomar essa conversa em outro post.

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s