O bom de escrever é que a gente às vezes retira coisas ‘da gaveta’ e encontra algum fragmento de passado estranho; nem bom nem ruim, mas diferente, que fala de algo da gente que já não percebemos mais, que se perdeu, mudou, ou…
O texto abaixo é um desses textos. Lendo-o hoje, não sei bem o que fazer com ele; não tenho certeza se ele fala de um passado que já passou ou de um futuro ainda não bem estabelecido. Enfim, vai assim mesmo. Os textos – mesmo os nossos – também podem ter seus mistérios…
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Dia desses, ouvindo um podcast (o cabulosocast, disponível em https://leitorcabuloso.com.br/category/cabulosocast/ , que, aliás, recomendo), tive um “insight”, como diria o velho Freud. O programa falava sobre um livro onde a narrativa se dava a partir do ponto de vista de um psicótico, ou algo assim; e os comentadores aplaudiam a iniciativa como se ela fosse “inclusiva”, tipo: chega dessa política de exclusão das minorias, os psicóticos também merecem seu lugar na cultura, etc.
O aplauso me pareceu ingênuo. Não apenas isso: a perspectiva algo romântica dos comentadores – que me parece casar com uma visão extremamente difundida hoje, aliás -, contrastava com a psicanálise por um certo otimismo, um otimismo quanto ao homem, uma esperança de que o humano possa “dar certo”. Numa palavra, uma esperança NO homem, uma esperança que podemos chamar de… humanismo.
Pois o humanismo é isso: a crença num certo potencial intrínseco ao ser humano, um potencial que o homem teria por si só, que já nasceria com ele, e ao qual ele deveria – ou poderia – retornar, desde que lhes tirem os “entraves” do caminho – a sociedade e seus preconceitos, a opressão da maioria, etc.
Não estou negando que essa opressão exista, nem que ela seja extremamente sofrida para todos que padecem com ela – incluindo aí os que sofrem por adoecimento psíquico. Mas a psicanálise me parece estar além desse humanismo. O otimismo que ele transparece não cabe nela. Não é porque o personagem conseguiu encontrar um ombro amigo que ele VAI virar uma pessoa melhor – mais “humana”; não é porque alguém descreve o psicopata do ponto de vista da psicose que os psicóticos vão se sentir mais “integrados”, mais incluídos. Não. Aceitaria antes na possibilidade de o inverso acontecer: que os não-psicóticos, lendo a história escrita do ponto de vista de um psicótico, reconhecessem EM SI um núcleo, um resto, de psicose, que todos temos (ao menos é o que vão dizer Bion e outros). Imagino inclusive que o autor tenha escrito o livro com essa intenção.
Mas voltemos ao humanismo. Acredito que há aí um problema na medida em que postular a aceitação como “norma” impossibilita que o objeto da aceitação – o psicótico – maneje a distância que ele, por questões internas, necessita. Dito de outra forma, a aceitação obrigatória é uma obrigação como qualquer outra; ou, mais precisamente, um preconceito. Como qualquer outro.
Mas o sentido maior de meu “insight” talvez seja ter percebido que a psicanálise é um pouco como a ciência, pois ela se acerca do fenômeno “psicose” com a mesma falta de paixão que deve orientar o trabalho científico – “trabalho”, e não “paixão”. Nela não há lugar para a luta “romântica” do psicótico contra o mundo, não há lugar para a ética do personagem que decide ir contra tudo e contra todos para defender a “sua” verdade. Não há “literatura”, nesse sentido. Há doença; falta de sustentação humana, de sincronicidade humana, no início da vida. E só.
Mas – e Isso é que é estranho – a doença é vista como consequência da falta de cuidado, de relação, de sustentação humanas. Só que essas coisas “humanas” são vistas do ponto de vista da técnica; são tão objetivas quanto qualquer outra coisa. Não são esperanças, não são romance. Não se trata de inclusão.
Para dizer tudo diretamente, não há nada de “humano” no homem. O homem não é nada, não tem valor nenhum, se não for “humanizado” pelo cuidado de um ambiente “suficientemente bom” (Winnicott) – ou “suficientemente humano”, talvez? Não há “humanismo” no homem, portanto. O humano está na relação, no cuidado, no outro; não no homem.