Acho que foi Émerson[1] quem disse que o homem cria as coisas com base em seu corpo, de sorte que todos os objetos e ferramentas humanos seriam, em última análise, extensões de nosso próprio organismo.
Assim, por exemplo, a casa seria apenas um prolongamento do útero; carros e aviões uma extensão da caminhada, um computador seria um cérebro algo mais subserviente (e matemático), e assim por diante. Enfim.
Pensei nessa história ao me dar conta de como os conceitos de “continente” e “conteúdo” se aplicam a quase tudo. Essa “co-naturalidade” dos conceitos me lembrou então da ideia de Émerson, já que, no fim, estaríamos apenas e sempre às voltas com tudo o que é humano.
Nesse contexto, continente & conteúdo seriam talvez expressões conceituais da relação entre o feto e o útero, ou do bebê nos braços da mãe – num apertado holding, como diria Winnicott. Ou seria o inverso?
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Em psicanálise, devemos à Bion a popularização de ambos os conceitos. Ignoro se ele deu uma definição exata dos termos, mas eles se tornam claros em seu uso. A casa, para voltar ao nosso exemplo, seria “continente” com relação à nós mesmos, que seríamos o “conteúdo”. Um carro também seria ‘continente’ em relação à nós e à nossa pressa de chegar. Já um computador seria um continente em relação aos conteúdos (programas, dados) que colocamos nele.
Esse último exemplo nos permitirá dar um passo adiante: quando pedimos coisas demais à máquina, ou quando existe capacidade de processamento de menos, o computador “trava”. Ficamos então sentados olhando para a tela por alguns minutos, até que ele se “desafogue”. O que aconteceu?
Não atentamos para a necessidade de uma adequação entre o “continente” e o “conteúdo”. Sim, uma casa é continente com relação à seus ocupantes. Mas uma casa de um quarto terá dificuldade em ‘conter’ quinze ocupantes, por mais simpáticos que eles sejam. Um carro aceitará com tranquilidade quatro pessoas, mas dois cachorros dirigindo não seriam necessariamente conteúdos “adequados” ao carro.
Continente e conteúdo, então, devem manter uma certa adequação um em relação ao outro. E aqui chegamos mais ou menos ao uso que Bion dava para os conceitos no terreno da psicologia.
Bion propôs entender as ideias, os pensamentos, e também as emoções, como “conteúdos”, e a mente como “continente”. Essa função continente da mente seria formada basicamente de uma rede de emoções, e essa rede, por sua vez, se originaria das relações entre as pessoas, especialmente as relações com relevante troca emocional.
Assim, fazendo uma equação, teríamos que quanto maior o número de emoções (ou troca emocional), maior o número de conteúdos (pensamentos, emoções) que a mente estaria disposta a acolher. Inversamente, relações de menos ou deficitárias implicariam em pouco espaço para os conteúdos, que teriam então que ser “evacuados”, projetados para fora da mente.
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A evacuação de conteúdos mentais não acolhidos (não contidos pela rede emocional disponível) consistiria basicamente na projeção de pensamentos próprios aos outros, na explosão emocional, na realização de atitudes irrefletidas, estúpidas, violentas, etc. Ou seja, assim como sugerido pela conotação “digestiva” do termo, evacuação tem a ver com a “indigestão” de conteúdos, que são então retirados da mente como uma diarréia, ou seja, sem elaboração e com algum desgaste para o organismo – quase como uma doença.
O que me leva a outra frase, não de Bion, mas de Antonino Ferro, ‘bioniano’ de carteirinha. Ele diz, referindo-se às manifestações de violência na sociedade, que “O problema não é a violência do instinto, e sim a inadequação daquilo que chamamos ‘mente’”. [2]
Ferro refere-se à ideia, comum em uma certa leitura da psicanálise, de que o ser humano seria marcado por um excedente pulsional, o qual, se não elaborado, encontraria expressões substitutivas, como a violência, por exemplo. Sua frase propõe uma inversão nessa perspectiva: a violência não seria expressão da violência da pulsão, mas sim da inadequação no continente da pulsão – qual seja, a mente.
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A mente seria continente em relação aos conteúdos da pulsão. A mente enquanto pensamento, mas também enquanto emoção vivida, conteria o pulsional – ou uma “exigência de trabalho mental”, como queria Freud.
O interessante aqui é que essa capacidade de contenção da mente seria efeito das relações mantidas entre os sujeitos. Mais especificamente: das relações entre os sujeitos que tenham grande relevo emocional.
Continuemos com a brincadeira. Se podemos dizer que a família é “continente” com relação à cada membro dela, podemos dizer também que a sociedade seria continente em relação às várias famílias, aos vários indivíduos e grupos que a compõe.
Com o que, em última instância, teríamos que a sociedade e o nível de participação emocional que ela veicula entre seus componentes estaria diretamente relacionada ao nível de violência expresso nessa mesma sociedade. Dito de forma mais simples, haveria uma relação direta entre a qualidade das relações (em termos emocionais) e a quantidade de violência expressa numa sociedade.
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Teríamos assim uma forma “simples” para reduzir a violência que nos cerca: a melhoria na qualidade das relações dos sujeitos e famílias violentos. Psicólogos, assistentes sociais, reformas econômicas, melhores condições de vida, especialmente quando dirigidos aos pais, teriam o condão de prevenir futuras manifestações de agressividade, futuros sujeitos delinquentes, ao dar condições aos pais de constituir para si, e para seus filhos, uma rede emocional funcionante.
As aspas são óbvias. Para além da (sempre) diminuta vontade política de mudança, devemos constatar realisticamente que talvez não estejamos prontos, como sociedade, para lidar com a violência de outra forma que não com violência. Queremos combater o agressor com agressão, num claro sinal de que tampouco nós somos “continentes” o suficiente. A cadeia e as penas da Lei são um reflexo da arcaica elaboração que conseguimos dar à violência hoje, e esse estado de coisas certamente não é gratuito.
Também nós somos agressores. Também nós somos animais com uma função mental deficiente, incompleta, que mal e mal consegue ser continente para os conteúdos de nossas próprias vidas, quem dirá para a vida e os problemas dos outros. É o problema “da espécie”, como diz A. Ferro. Com o que ficamos diante de duas opções:
– Numa, padecemos com a violência justamente porque não fomos capazes ainda de construir uma sociedade com instituições mais continentes em relação aos problemas da existência individual e familiar.
– Noutra, já somos essa sociedade, e então temos capacidade para elaborar os problemas que surgem – ou melhor, que surgiriam, porque se somos essa sociedade os problemas mal chegam a aparecer… Não há mais nem criminoso nem Juiz, e a continência dos problemas eliminou tanto a necessidade de agredir quanto a de punir. Justiça e delinquência se anulam mutuamente.
Parecemos estar infinitamente longe dessa segunda opção. Mas se olharmos para trás, 400, 500 anos são suficientes para termos uma noção de como as coisas melhoraram desde então. Quem sabe …
1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ralph_Waldo_Emerson
[2] “Evitar as emoções, viver as emoções”, pg 60. Ed Artmed, 2011
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