Política como “solução definitiva”

Num artigo escrito sobre o muro de Berlim [1], Winnicott pondera que o muro representava, na política, algo existente no ser humano em geral. Ou seja, a divisão, a necessidade de separar, em si mesmo, aspectos “bons” e aspectos “persecutórios”.

Pois ninguém é 100% bom, assim como ninguém é 100% ruim. Apoiado em sua experiência de psicanalista, Winnicott argumenta que o problema das tensões humanas nunca é o mau “em si mesmo”, mas apenas a maneira como relacionamos nossos aspectos bons e ruins.

Vale dizer: se nos desenvolvemos o suficiente para ser uma unidade, na qual elementos dos dois tipos estão contidos, não precisaremos projetar no ambiente, no outro, na política, nossos próprios aspectos cindidos.

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Winnicott não nos fala da possibilidade de uma vida sem tensões. Haverá sempre uma guerra onde está o humano. Apenas, pode ser uma guerra interna, ou uma guerra projetada, externalizada.

A grande diferença entre as duas é que a guerra interna se desenrola em termos de tolerância, continuidade, já que nos identificamos com os dois lados do combate. Somos ao mesmo tempo nossos objetos bons e persecutórios, e por isso precisamos encontrar meios de tolerar, de postergar, de conter o conflito (“conter”, aqui, não significa “acalmar”, mas apenas acolher, manter no meio interno).

O que é muito winnicottiano, nisso, é que a guerra interna não se resolve; sua “solução” é apenas continuar, é conter o conflito em termos de conflito, seguir a relação consigo mesmo de forma a incluir o conflito e a diferença interna. Não negar, não cindir, não “resolver”.

A guerra externa, por outro lado, tende a se dar em termos de “soluções totais“, onde o outro lado é identificado como “o mau”, e deve ser vencido, enquanto “eu” sou “o bom”. Obviamente, cada um dos lados se coloca na posição daquele que está apenas certo, e imputa ao outro todo erro.

Essa guerra não deve continuar; ela é feita para cessar o conflito. Calar as diferenças. Exterminar o inimigo.

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A questão aqui é que não há solução para nenhum dos dois conflitos. Vencida a guerra externa, logo outro bode expiatório deverá ser encontrado, para encarnar “o mau” que segue dentro de nós. Olhando de perto, vemos que aqueles que projetam precisam da guerra, pois ela lhes facilita a convivência com seus objetos persecutórios.

Com o quê, uma democracia só se mantém viva enquanto um número suficiente de pessoas amadureceu ao ponto de poder integrar o bom e o mau em si – e, logo, não precisa projetar isso nos outros. Sempre que a ênfase, no entanto, está em procurar “os culpados”, podemos ter certeza de que alguém está buscando alívio para seus próprios conflitos.

Quando o número dos que necessitam projetar é grande o suficiente, a democracia não se sustenta, e algum regime autoritário se faz presente. Todo autoritarismo se legitima em cima da necessidade de “resolver” algum problema – no outro. Sempre. Tanto as ditaduras quanto os regimes comunistas se percebem necessários a partir de um problema que nunca está neles, e que pode – e deve – ser extirpado.

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A política se mostra, então, grandemente dependente da saúde mental de seu povo – o que não é surpresa.

Para concluir, cabe observar que o uso que se faz da política talvez expresse algo desse mesmo mecanismo projetivo. Ou seja, esperar “a salvação” da política pode ser, em si mesmo, uma projeção.

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Notas

[1] Winnicott, D. “Tudo começa em casa”. Editora WMF Martins Fontes. São Paulo, 2016 (2ª tiragem), pp 229 – 235

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