Apresentei o texto abaixo (e mais uma segunda parte) em um grupo de estudos do qual fazia parte. Aproveito para repassar aqui alguns pontos interessantes.
Nietzsche e o perspectivismo.
Uma das ideias centrais em Nietzsche é a ideia de perspectiva, do perspectivismo. Basicamente, ele diz que sempre que olhamos alguma coisa, olhamos de um ângulo específico – ou seja, é bem provável que existam outros ângulos igualmente possíveis – e verdadeiros – para essa mesma coisa.
Isso acontece inclusive no mundo físico, basta pensar nos perigos da evidência imediata, da experiência tal qual nós a percebemos.
Ninguém, por exemplo, olha para o horizonte e vê algo ‘circular’. Se nos baseássemos apenas nessa evidência, todos diríamos que a terra é plana. Da mesma forma, todos sabemos que uma pena e uma pedra caem a velocidades diferentes, então nunca pensaríamos que, no vácuo, eles cairiam com velocidade igual.
Daí a aposta nietzschiana pela multiplicação de perspectivas, pelo olhar a mesma coisa de vários ângulos possíveis. Quanto mais perspectivas, mas perto da “verdade” estamos.
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Uma das maneiras de evitar as perspectivas é a experiência, o teste empírico. É bastante discutível se aí a perspectiva é realmente eliminada – diria que na maioria das vezes, não – mas o fato é que, em geral, se pensa que um teste empírico ajuda a eliminar o fator pessoal e sua potencial interferência nos caminhos do saber.
Como proceder, no entanto, quando passamos do mundo físico para o mundo psicológico? Isto é, como iremos eliminar o viés pessoal quando buscamos, justamente, compreender o que é esse pessoal? Não que seja impossível, mas… talvez adicione um pouco mais de dificuldades no caminho.
Nietzsche era muito atento a esses perigos no caminho do conhecimento. Especialmente quando se tratava de pensar o psicológico, a “alma” do homem. Poderíamos dizer que para ele, o saber psicológico estava completamente “poluído”, bagunçado, entravado por concepções derivadas OU de uma perspectiva ingênua, OU por preconceitos de toda ordem, ligados entre outros à evidência imediata. Boa parte de sua crítica se dedicou a fazer uma espécie de ‘limpeza’ nesse campo. Veremos algo disso no que segue.
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1ª crítica: A consciência e o EU consciente
A consciência, em geral, sempre foi tida como CAUSA de alguma coisa: seja enquanto causa de pensamentos, seja enquanto causa da racionalidade ou como atributo necessário à existência de um “EU”, sempre se pensou que SEM a consciência, nada de propriamente psicológico, cognitivo, mental, poderia existir para o homem.
Nietzsche chega com os dois pés na porta desse conceito, dizendo claramente: poderíamos fazer TUDO – pensar, imaginar, querer, agir – SEM consciência. Cito:
“Nós poderíamos pensar, sentir, querer, recordar, agir, sem que tudo isso nos entrasse na consciência. Ainda hoje, a parte preponderante de nossa vida […] ocorre inconscientemente, Para quê, então, consciência?” [Nietzsche, Gaia Ciência, §354]
“Para quê, então, consciência?”, pergunta Nietzsche; – e responde: a consciência não é necessária, não é “causa” de nenhuma dessas faculdades; ela é, antes, uma REDE DE LIGAÇÃO entre as pessoas, um outro âmbito ou “lugar mental”, aonde essas faculdades todas podem se refletir, podem se espelhar – mas não precisam dele para acontecer.
Mas o que nos interessa realmente aí é pensar que, assim como o agir, o querer, o sentir, etc, também o EU pode se refletir nesse ‘espaço mental’ da consciência. Existiria assim um “eu consciente” que NÃO necessariamente englobaria todo o “EU” do organismo, mas que, por se situar na consciência, tenderia a perceber tudo somente a partir da consciência.
Daí o perspectivismo de Nietzsche: por estar na consciência, o EU tende a achar que só existe pensamento consciente, querer consciente, agir consciente, etc. Seria portanto um erro ‘de perspectiva’ essa valorização da consciência, derivada do parentesco entre esse EU e a consciência.
Mas e todo o resto que não é consciente? Chegaremos lá na segunda parte desse artigo.
2ª crítica: a linguagem e sua estrutura
No aforismo 17 de “Além do Bem e do Mal”, Nietzsche repete essa crítica ao “EU” enquanto CAUSA de pensamentos, porém agora vinculada a um HÁBITO LINGUÍSTICO. Sua ideia é que a linguagem tende a ESTRUTURAR o pensamento em termos binários, do tipo sujeito – objeto, agente-agido, causa-efeito, etc – MESMO ONDE ESSA ESTRUTURA NÃO EXISTE.
Assim, muitos filósofos (por exemplo Descartes, com seu “penso, logo existo”, isto é, colocando o “existo” – o EU – como agente necessário, causa, da ação “penso”) tendem a colocar o EU enquanto causa do pensamento, porque, do ponto de vista da linguagem, é NECESSÁRIO que exista um agente.
Nietzsche, entretanto, pondera: um pensamento vem quando ELE quer, não quando EU quero. Ninguém chega um dia e diz: “HOJE vou ter uma ideia genial”, simplesmente porque NÃO COMANDAMOS nossos pensamentos, NÃO SOMOS SEUS AGENTES. Entretanto, tendemos, por um hábito gramatical, a entender – e a dizer – que “eu TIVE um pensamento”. Numa palavra, falseamos a experiênica.
3° crítica: simplificação e identificação
Por fim, a linguagem também simplifica as coisas, chamando estruturas complexas por apenas um único e mesmo nome – o que ESCONDE partes do processo. O exemplo que Nietzsche dá é o da VONTADE, do querer: para ele, em toda vontade existe uma multiplicidade de agentes, de partes de nossa subjetividade, em relação: uma parte se impõe à(s) outra(s), e determina, comanda: EU QUERO TAL COISA; a outra parte obedece: SIM SENHOR! – (o exemplo completo se encontra em Além do Bem e do Mal, aforismo 19).
Mas, como somos ao mesmo tempo a parte de manda e a que obedece, obscurecemos o processo chamando isso por apenas um nome: “EU”. No fim, temos dificuldade de perceber tanto que o EU NÃO É “causa” da vontade, quanto que ele apenas SE IDENTIFICOU com o resultado final do processo.
Assim, quando digo: “Eu tenho fome” vemos claramente que NÃO FOI o EU quem “teve” fome, isto é, quem a causou – ele apenas se identificou com o resultado de um processo complexo, que ele aliás nem domina. Mesmo assim ele vive a experiência como se o processo fosse “dele”.
Numa palavra: parte fundamental de nossa experiência de “EU” tem a ver com uma capacidade de se IDENTIFICAR com aquilo que fala mais alto em nossa experiência, mas isso não tem nada a ver com ser causa dessas experiências. Entretanto, também em função da supremacia desse ‘perspectivismo do EU’, tendemos a não ver a situação, a falseá-la.
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Voltando ao começo de nosso texto, existem muitas fontes de engano no caminho do conhecimento, e esses desvios são tanto mais presentes na psicologia quanto se trata de conhecer justamente aquilo que é, talvez, a principal fonte de erros: o EU e a consciência do EU.
Nietzsche aponta, nesse âmbito, três erros muito comuns, muito presentes, porque de certa forma ‘entrelaçados’ à nossa subjetividade: 1) o erro de pensar a consciência como necessária à cognição, ao pensamento; 2) o erro de pensar o “EU” como necessário, como causa, do pensamento, do querer, etc; 3) o erro de estruturar os processos que percebemos subjetivamente na forma da linguagem, imputando agentes – ou apagando partes do processo – em função apenas de um hábito gramatical.
O quadro final de tudo isso nos sugere que, para Nietzsche, pensamos (e vivemos) sob a ilusão retrospectiva[1] de que somos “CAUSAS DE NÓS MESMOS”; a linguagem e a consciência, como vetores sociais, participam diretamente disso, desse FALSEAMENTO DA EXPERIÊNCIA DIRETA.
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Fica claro que existem muitos pontos em comum entre essa crítica nietzscheana e aquilo que a psicanálise vai propor e desenvolver anos depois. Parte disso pretendo apresentar no segundo artigo dessa série, dedicado à Winnicott. Mas pode ser interessante extrair algumas consequências da concepção nietzschiana, de forma mais explícita:
- Se a consciência não é “causa” de pensamentos, temos que concluir que os pensamentos são inconscientes. Seja lá o que isso for em Nietzsche, está claro que ele são causados em outro “âmbito” da psique, fora da consciência;
- Podemos estar “vendo” o mundo psicológico com uma perspectiva falha, derivada da linguagem, dos hábitos sociais, etc. É necessário sempre levar em conta o perspectivismo de nosso próprio olhar;
- Parte daquilo que compõe nossa experiência de “este sou EU” seria essa capacidade de o EU SE IDENTIFICAR com o que fala mais alto no corpo – ou no inconsciente, diríamos. Será que poderia ocorrer o contrário – tipo, o “EU” NÃO se identificar com algum processo intenso do corpo – e aí então termos um CONFLITO entre diferentes instâncias? Isso é praticamente a psicanálise começando…
- Se a consciência é uma ‘rede de ligação’ entre as pessoas, então tudo que acontece nela estaria, ao mesmo tempo, disponível ou passível de ligação, de comunicação, com os outros. Isso incluiria o EU consciente. Com o quê, o “EU” de que temos consciência seria apenas um “EU social”, um EU voltado para a comunicação, para a relação com os outros. Não seria nada único, exclusivo, privado, particular.
- Esse “EU social”, no entanto, teria essa capacidade de se identificar com o que acontece NO CORPO – isso sim, seria o mais particular; ele então LIGA, de certa forma, o corporal (ou inconsciente) e o social (ou consciente);
- Nietzsche sugere que a simplificação da linguagem pode ser parte do processo através do qual o EU se identifica com o resultado; ou seja, não é apenas um “erro”, mas um “erro interessado”, uma escolha deliberada, por assim dizer;
- Como essa escolha não é do EU consciente, temos que concluir que é uma escolha inconsciente;
- Com o que teríamos já em Nietzsche a sugestão de que a sociedade, o EU consciente, enfim, todo esse âmbito da vida do sujeito TAMBÉM SÃO DETERMINADOS pelo inconsciente – ou, no mínimo, por uma relação entre determinações inconscientes e necessidades conscientes, sociais, politicas, etc;
- Outra possibilidade é que o EU consciente, justamente na medida em que é consciente – ou seja, social, parte daquela rede de ligação entre as pessoas – se identifica com aspectos do corpo apenas na medida em que eles são RECONHECIDOS NO SOCIAL
- O que nos possibilita pensar que certas sociedades vão se relacionar com o corpo de forma mais integrada, menos restritiva, do que outras.
- Isso nos levaria à propor que os conflitos entre corpo e social, ou entre o inconsciente e o “EU”, seriam sempre relativos tanto à uma estrutura específica do corpo quanto à um momento particular da cultura ou da sociedade.
- Ou seja, não haveria doença psicológica “em si” – supondo que a doença psicológica advenha do conflito entre o EU e o corpo, como falamos acima – mas apenas doenças ou conflitos circunstanciais, relativos a um determinado momento da história.
Bom, creio que já dá pra termos uma ideia de como isso, DE FATO, é muito próximo da psicanálise. O texto nietzschiano é muito denso, muito rico, e muitas outras consequências poderiam ser extraídas desses três – TRÊS! – aforismos, apenas. Mas deixaremos isso para outra oportunidade.
(continua)
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NOTAS
[1] Disse ‘ilusão retrospectiva’ pensando na capacidade que o EU tem de se IDENTIFICAR com o que fala mais alto em nosso corpo; assim, muitas experiências podem ter se decidido em nível infra-consciente, fora do ‘EU’, mas mesmo assim o ‘EU’ tenderia, depois, a se identificar com o processo e a se colocar como ‘causa” dele.
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Leitura adequadamente didática, profunda e prazerosa.
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Grato pelo comentário! 😀
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