O não-todo

Continuando os posts sobre aproximações entre a filosofia oriental e a psicanálise, lembrei de um conceito que aparece em Lacan, e também na esquizoanálise de Deleuse e Guatarri (como “n-1”), e que poderíamos resumir como o “não-todo”.

A ideia seria mais ou menos o seguinte: procurar sempre, em toda experiência, aquele ponto imediatamente anterior ao clímax, ao que seria o “todo”; quase uma recusa da completude. Esse ponto “não-todo” seria, ao mesmo tempo, o ponto de maior potência, e o de menor captura do sujeito. Alguns exemplos vão nos ajudar a tornar mais clara a ideia.

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Se eu estou estudando para uma prova, por exemplo, a ideia do “não-todo” poderia ser me precaver contra o momento onde eu achasse que “já sei tudo”; pois esse seria o momento onde eu pararia de estudar. Assim, a ilusão do “todo” estancaria o processo de aprendizagem.

Outro exemplo é o orgasmo, no tantra: ele não é exatamente impedido, mas é desincentivado, colocado em segundo plano, fazendo com que o sexo se transforme num processo potencialmente sem fim; “não-todo”, não completo, não concluído. Paradoxalmente, o sexo “não-todo” tende a ser vivido como mais rico e mais complexo do que o sexo “todo”, finalizado.

Mais um exemplo retirado das artes marciais: qualquer golpe que o praticante dê o expõe um pouco mais do que a posição defendida, neutra; então, idealmente, todo golpe deveria ser “não-todo”, isto é, o praticante nunca deveria tentar desferir um golpe que fosse resolver tudo, concluir tudo – pois isso também implicaria numa exposição maior ao oponente, num aumento de risco. Diríamos que o lutador deve procurar sempre o menor golpe possível para resolver a situação (o que explica o “minimalismo” de algumas artes orientais, que quase não aparecem, que usam o golpe do oponente contra ele mesmo, etc).

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Essa percepção da importância do “não-todo” – ou do “vazio”, como aparece em algumas filosofias -, é algo que contrasta grandemente com nosso horizonte cultural, aqui no ocidente. Parecemos sempre buscar (e acreditar!) que existe um ponto de solução ótima, cujo custo seria desprezível – um golpe que vai resolver tudo; um sexo que vai ser puro orgasmo; uma forma de estudar que seja garantida, sem falhas, etc. Um processo que vai ser “todo”, completo, sem resto.

O que é empobrecedor por uma série de motivos – que posso abordar em outros textos. Hoje, digo apenas que, em termos práticos, isso é ilusório; e em termos subjetivos, implica num enorme desconhecimento sobre o humano.

Pois a premissa de uma ação que seria “toda”, completa, é um homem que fosse ele mesmo “todo”, completo, simples, sem antagonismos, sem conflitos.

Algo que a filosofia oriental jà descartou há milênios, e que a psicanálise, no seu rastro, veio a redescobrir para o ocidente.

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Não somos nunca uma unidade: somos sempre um composto, formado de vários pedaços, onde o “outro” – as pessoas próximas e significativas pra gente -, tem um papel essencial.

Ao ponto de podermos dizer que nenhuma ação – mesmo as “nossas”, individuais, privadas – é “toda” nossa; há sempre algo do outro naquilo que fazemos. Nesse sentido, toda ação humana é “não-toda”.

É quase o mesmo que dizer que “toda ação humana é incompleta”; que há uma incompletude necessária ao humano. E mais ainda, se esse humano é um individualista, se ele se pensa e se percebe como passível de completude sem o ‘outro’.

Mas nesse ponto, nosso horizonte capitalista já não aguenta e grita – “mas como? então não há nada que eu possa comprar, que me complete?”.

O que me sugere que é o momento de encerrar o texto…

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