A natureza “conhece” o mundo através de suas experiências. Ela preserva, no DNA, as experiências que funcionam, e abandona, também pela seleção natural, as experiências que não funcionam.
O indivíduo não importa, nesse processo. É a espécie, é a experiência como um todo, o que importa. O saber do indivíduo conta? Bem pouco, parece. O que importa, do ponto de vista natural, é que exista adaptação, crescimento, seleção do grupo.
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É claro que falar assim humaniza a natureza. “Ela” não é um sujeito; “ela” não precisa ser uma unidade, não precisa ter finalidade nem se importar com o resultado final. Falamos assim para simplificar.
Como situar o conhecimento humano, diante desse conhecimento “orgânico”? Esse conhecimento que o próprio avançar das formas de vida vai registrando, numa imensa memória corporal que nos compõe, mas do qual pouco somos conscientes?
É estranho, porque portamos, em nosso corpo, muito daquilo que a natureza “concluiu” a partir de longuíssimas experiências. Mas nosso saber consciente não tem nada a ver com isso: é um saber outro, desligado da história da vida, e preso, muito provavelmente, apenas à “sua” vida, à história de seu crescimento individual. O indivíduo, aquilo que parece não contar para a natureza.
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De qualquer forma, a natureza “quis” a consciência. Comparada com esse saber genético, que se aprimora com as gerações, a consciência se define justamente como um saber de adaptação mais rápida. O indivíduo se adapta ao meio através da consciência, do mesmo modo que a espécie se adapta através dos sucessos do corpo.
Poderíamos entender a consciência, portanto, como análoga ao saber “da” natureza, só que mais focado no instante, e no curto espaço de vida de um indivíduo. Uma réplica menor, quase uma paródia, do grande movimento natural das gerações.
Nesse contexto, faz sentido pensar que podem ocorrer desencontros e ruídos entre os dois tipos de saberes – o longo e consistente saber natural (e inconsciente), e o rápido e instantâneo saber do momento (a consciência).
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Como se expressa em nossa vida consciente o longo saber natural? Impulsos e afetos denotam as grandes direções da vida. É o que sustenta Damásio[1], por exemplo. Caberia então à consciência integrar o saber milenar do corpo ao saber instantâneo do ambiente.
Estariam reunidos, assim, os ingredientes para essa estranha dicotomia em que vive o homem, separado – ou, antes, distanciado – de si mesmo: a natureza o convoca para um lado, e a consciência o puxa para outro.
Quanto menos natural uma cultura, isto é, quanto mais afastada ela for dos fundamentos corporais da espécie, mais problemas podemos esperar encontrar. Problemas que a psicanálise ou a psicologia analítica não titubeariam em qualificar de… psicológicos.
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Temos assim uma maneira de definir a doença mental, entendendo-a como expressão de um desencontro entre os impulsos naturais do corpo (afetividade, sexualidade, agressividade, sociabilidade, etc) e as formas específicas de cada cultura.
Em outras palavras, em culturas muito “desnaturalizadas”, a consciência não conseguiria integrar os saberes ou demandas dos dois tipos que diferenciamos acima. A doença seria então, conforme sugere Freud, uma forma de vivenciar essa integração, só que fora dos espaços da cultura; no plano um pouco lateral da doença, onde uma flexibilidade maior costuma ser tolerada.
Como diz Jung, a doença mental obriga o sujeito a viver suas demandas inconscientes (que aqui chamamos de ‘saber do corpo’) mesmo que ele não tenha consciência disso. Como vimos acima, a consciência conta menos, do ponto de vista da natureza, do que o saber do corpo. Assim, em casos extremos, o corpo acionaria o “modo de sobrevivência”, que consiste em expressar as demandas inconscientes mesmo que às custas da consciência, ou até do “Eu”.
De um ponto de vista mais geral, no entanto, a doença mental no indivíduo pode estar expressando uma doença da cultura. Isto é, o fato de que aquela cultura específica está traduzindo o mundo (e a imagem de ser humano daí derivada) de maneira muito distanciada daquilo que os impulsos e afetos precisam.
Caberia à psicologia, então, uma crítica da cultura, baseada naquilo que o corpo pede.
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Notas:
[1] Damásio, Antônio: “A estranha ordem das coisas”