Gosto muito de ler autores do séc XIX e XX – Machado de Assis, Dostoiévski, Nietzsche, o próprio Jung, Freud, etc – e, quando tiro os olhos da leitura, por vezes me dou conta de como mudamos, em poucas décadas.
Machado fala, ainda, da presença (sempre ambígua) da igreja cristã, na vida de seus personagens; Dostoiévski nem se fala. Jung fez da questão religiosa uma questão central para a psicologia (o mesmo valendo, paradoxalmente, para Nietzsche).
Freud parece o autor mais “moderno” nesse contexto, o menos “contaminado” pelo passado, vamos dizer assim. Mas quando nos aprofundamos em sua leitura, ele inevitavelmente reencontra as forças do passado, pois está em sua vizinhança.
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O fato é que o séc XX, especialmente, foi um tempo de muita transformação. Basta pensarmos que tivemos DUAS guerras mundiais, mais o surgimento das experiências comunistas, que continuam até hoje.
Isso não é pouca coisa. Não é irrelevante. Podemos até pensar que, dado o montante de energia despendido para produzir essas revoluções todas, nosso tempo precisou ser, comparativamente, mais pacato.
Esse poderia ser um dos fundamentos de nossa “dessacralização do sagrado”, como dizem alguns autores (por ex., Mircea Eliade). Isto é, desse movimento que desvaloriza a noção de “sagrado”, e passa a enxergar as coisas como um imenso “tanto faz”, onde tudo é igual – desde que eu tenha “o meu”.
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Não nos percebemos assim, entretanto. Embora generalizar seja sempre um erro, penso que para a grande maioria das pessoas de hoje, nós simplesmente vivemos num tempo “bom”, isto é, laico, sem ilusões, sem guerras ou problemas que não possam ser resolvidos na próxima grande invenção tecnológica.
Como terapeuta, não posso ver isso sem me inquietar – pois isso se parece muito com idealização. Se nossa época fosse um paciente, poderíamos ver nessa perspectiva idílica uma romantização, justamente na medida em que nega a experiência passada, e, portanto, não aprende com ela.
A própria ideia de que não precisamos nos voltar para o passado, que o futuro é que nos interessa e nos “salvará” – uma ideia tão caracteristicamente nossa -, não tem nada de óbvio ou de natural, e parece andar de par com essa cegueira seletiva em relação ao que nos aconteceu.
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Como acontece às vezes, gostaria de estar errado, nesse ponto. Afinal, porque não podemos simplesmente ser um tempo “novo”, uma época que se separou de suas raízes “podres”, e que vai se construir a partir de outras bases, outros valores?
Infelizmente, o que a história nos ensina, e também a clínica, é que não existe paz sem a sombra de uma guerra; não há época feliz, sem o peso do sofrimento sustentando boas escolhas; não há aprendizagem, sem que o erro seja sentido – e tenha sentido…
Tudo indica então que, com nossa crença no futuro e nosso voltar as costas ao passado, estejamos apenas preparando as condições para seu retorno. Justamente nossa pretensão de ser um tempo “sem passado” é o que nos fará repeti-lo –