Na introdução ao livro “A criança e o seu mundo” [1], Winnicott faz uma associação surpreendente: em toda história de ditadores e ditaduras, encontraremos uma luta surda para negar e controlar uma mulher – a mãe – cujo domínio ele, o ditador, inconscientemente ainda teme.
O ponto de partida de Winnicott é o fato muito trivial de que todos nós passamos por uma fase de dependência absoluta na infância. O que fica sugerido é que depender pode ser extremamente ansiogênico.
Sabemos, pela clínica, que as experiências iniciais do bebê podem ter um papel organizador – e desorganizador! – muito grande. É geralmente admitido, entre as psicologias profundas, que há uma associação entre a qualidade da relação mãe – bebê e a consistência do Ego. O que Winnicott nos propõe apenas tira as consequências disso.
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Em sua teoria do amadurecimento, Winnicott postula que a relação com a mãe será o meio, o “médium”, a partir do qual se estabelecerá nossa relação com a realidade. A mãe apresenta a realidade ao bebê, tanto interna quanto externa, e com isso serve de modelo para o estilo de relação que se estabelecerá entre o Ego e o real.
O ponto, aqui, não é nossa relação objetiva com a realidade – não se trata de “percepção”, “cognição” ou coisas do tipo. Estamos falando da elaboração subjetiva que sempre fazemos por cima desse dado objetivo. Isto é: tal percepção é boa? É má? É permitida? É proibida? Que uso posso fazer dela? Coisas todas que não podem ser respondidas apenas objetivamente, mas dependem sempre da nossa experiência pessoal, assim como da cultura onde nos inserimos (nada é “proibido” na natureza, etc).
Se há, então, uma correlação entre o modo como nos relacionamos com a realidade, e o modo como experienciamos a maternagem no início da vida, o que podemos inferir a partir do comportamento de ditadores e dos que se identificam com eles?
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É esse o passo que Winnicott dá, sugerindo que, em todo ditador, o esforço por controlar a realidade decorre, no fundo, de uma luta surda para impedir que o sujeito caia, novamente, numa experiência de dependência para com um “outro” tão poderoso quanto o é a mãe, para um recém-nascido.
Chama a atenção que o interesse de Winnicott, nesse texto, centre-se menos nessa associação, e mais naquilo que lhe parece uma “cura” ou “facilitação” para o problema. Ou seja: na necessidade da aceitação cultural de que as mães desempenham um papel fundamental na estruturação de todo sujeito humana, e que nisso está envolvida necessariamente uma boa dose de dependência.
O ponto, para Winnicott, parece ser facilitar que aqueles que não tiveram uma maternagem boa o suficiente possam se entregar a outros tipos de dependência, sem grandes conflitos internos, dado que a própria sociedade reconheceria essa necessidade.
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Tudo isso faz pensar. O texto de Winnicott foi escrito há 60 anos atrás. Não me parece que aceitemos melhor, como sociedade, o fato da dependência, ao menos no Brasil. Mas o ponto talvez mais importante tem a ver com a própria bandeira do feminismo, a maneira como se vem lutando pelos direitos da mulher, pelo seu empoderamento, nas últimas décadas.
Pois decorre da leitura winnicottiana que a mulher detém, pela própria biologia, um poder gigantesco em relação a todo sujeito humano. Esse poder de estruturar ou desestruturar o sujeito em suas raízes, relaciona-se com o próprio papel de mãe, hoje ainda exclusividade feminina. O reconhecimento da importância e da complexidade do materno seria, assim, uma bandeira fundamental para que a mulher ganhasse importância na sociedade, penso eu.
Mas a orientação das lutas femininas parecem muito mais centradas em outras bandeiras – também importantes, mas mais ligadas à busca da igualdade entre homens e mulheres (nos salários, por exemplo) do que em ressaltar o valor da mulher enquanto mulher. Isto é, o valor da mulher por sua diferença em relação ao homem.
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O assunto é complexo, e certamente demanda uma análise muito mais profunda e ampla do que o sobrevôo que fizemos aqui. Mas a inquietação que o texto de Winnicott veicula sugere, a meu ver, que podemos estar presenciando uma luta pela “masculinização” do feminino dentro dos próprios movimentos feministas.
Vale dizer, como se o reconhecimento da importância da dependência, na maternagem, estivesse cada vez mais distante, a ponto das próprias mulheres já não quererem sustentar isso.
Como indica o texto winnicottiano, essa ausência do “maternal” tende a construir um tipo de relação com a realidade caracterizada pelas ditaduras, ou seja, onde preponderam sujeitos individualistas, controladores, intolerantes e agressivos, e onde a identificação com o outro é grandemente dificultada. Alguma semelhança com nossa realidade atual?
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Notas:
[1] D. W. Winnicott. “A criança e o seu Mundo”. Ed LTC, 2022. Link para o livro, na Amazon: https://amzn.to/3B05uT3
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Essencial!
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